Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
Em 20 anos, a consulta pública de maior audiência da história das agências reguladoras se deu em torno do carbofurano, princípio ativo de um agrotóxico. Resíduos excessivos da substância, que afeta os neurônios e pode causar retardo mental, haviam sido detectados em amostras de alimentos e na água. Por isso, o carbofurano já havia sido proibido nos Estados Unidos, no Canadá, na China e na União Europeia.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recebeu 13.114 manifestações nesta consulta pública. Dessas, quase dois terços foram contrárias à proibição do agrotóxico. Menos de 10% dos participantes eram profissionais de saúde ou representantes de entidades de defesa de consumidores ou pacientes. A grande maioria era formada de pessoas que se autodeclararam "cidadãos", "consumidores" ou "outros profissionais relacionados ao tema da consulta".
Pelo teor das manifestações, no entanto, fica claro que a maioria é formada por usuários do agrotóxico - "A proposta deve ser cancelada até que tenhamos substitutos com custo/benefício comparável ao carbofurano", "as alternativas de controle para minha lavoura são poucas e muito caras", "discordo porque tem me ajudado muito na lavoura e no bolso".
As manifestações evidenciam as razões pelas quais, apesar dos desgastes enfrentados pelo inquilino do Palácio do Planalto, valores da base bolsonarista estão enraizados em setores representativos da sociedade, como o produtor agrícola.
A despeito da maioria pela liberação, a Anvisa estabeleceu um calendário de veto ao uso da substância por tipo de lavoura até a proibição definitiva em todo o território nacional a partir de abril de 2018. A proibição não foi revogada neste governo, o que demonstra a resiliência de setores da burocracia frente aos novos rumos do Executivo.
O achado é parte de pesquisa da professora Natasha Salinas do projeto "Regulação em Números", da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio. Coordenado pelo professor Sérgio Guerra, o projeto pretende formar um banco de dados sobre as agências reguladoras, da mesma maneira que um dia o fez o pioneiro, "Supremo em Números", cujas pesquisas esquadrinharam - e inquietaram - os ministros em sua atuação na Corte.
Nem todas as resoluções sobre agrotóxicos, no entanto, cumprem o mesmo roteiro. Um ano depois, o uso do 2,4D, substância censurada pela Fiocruz e pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário, foi colocado em consulta pública. Mobilizados para fazer frente à maioria formada na consulta do carbofurano, trabalhadores rurais ultrapassaram os produtores com suas manifestações e o uso foi amplamente reprovado. Apesar da rejeição de 85% dos participantes, a Anvisa não se manifestou, o que mantém a substância liberada até que uma resolução seja editada.
A imprevisibilidade dos resultados das consultas públicas decorre, em grande parte, do grau de abertura à participação. Qualquer um pode entrar na página da agência na internet, se cadastrar e deixar sua opinião. Nem nacionalidade é exigida. As consultas foram uma tentativa de se contrabalancear o déficit democrático das agências, cujo desenho institucional conferiu muito poder a uma burocracia não eleita. Nem todas as agências, no entanto, mapeiam o perfil das manifestações, o que deixa o instrumento, muitas vezes, suscetível à captura por lobbies.
Esta é, em parte, uma das razões pelas quais a indicação dos diretores das agências é uma das mais valiosas moedas de troca entre o Executivo e o Legislativo. Uma das cabeças coroadas do Centrão, por exemplo, o ex-deputado André Moura (PSC-SE), que foi líder do governo Michel Temer no Congresso Nacional e é réu em ações por formação de quadrilha, crime de responsabilidade e abuso de poder econômico, foi indicado para a Anvisa no apagar das luzes de 2018. O Senado não votou e agora o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, já sugeriu que vai escolher outro nome para a vaga.
Se as indicações políticas estão travadas, o projeto de lei que dificultaria a captura política das agências também o está. O texto define como critério para a nomeação a formação acadêmica compatível com o cargo e experiência profissional na área, além da composição de uma lista tríplice a partir da qual o presidente da República pinçaria sua escolha antes de submetê-la ao aval do Senado, como hoje é feito com o procurador-geral da República. Aprovado no Senado, o projeto passou à Câmara, onde recebeu uma emenda destinada a driblar a profissionalização das agências e o veto à politização das indicações.
As consultas públicas seriam a garantia de que algum mecanismo de participação estaria resguardado em meio a um desenho institucional ainda em disputa. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, no entanto, como mostraram Natasha Salinas e Fernanda Martins, num dos primeiros estudos do projeto, dedicado à ANS, cada agência adota um modelo de participação.
Como, pela legislação americana, as consultas são obrigatórias, lá realizam-se milhares por ano. No Brasil, ficam na casa da centena. Raramente uma agência promove mais do que dez por ano. Na identificação, o participante não é obrigado a informar se representa algum interesse corporativo, o que deixa em aberto a possibilidade de empresas interessadas mobilizarem audiências a seu favor.
Das dez consultas públicas de maior audiência nas 11 agências reguladoras do país, cinco aconteceram na Anvisa. Nesta e na Agência Nacional de Saúde, duas das autarquias de maior audiência, as consultas são facultativas. Em outras, como a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), é obrigatória, até porque as agências de infraestrutura também têm poder para fazer licitações, o que torna mandatória a consulta.
As agências não se entendem nem sobre a nomenclatura. Uns adotam a expressão "consulta", outras, "audiência" para se referir a mecanismos de participação que subsidiam a formulação de normas que, a julgar por aquelas de maior audiência, têm grande impacto sobre a vida dos consumidores. Das dez mais frequentadas, duas foram dedicadas a agrotóxicos, uma ao cigarro, duas à rotulagem de alimentos, duas a planos de saúde, uma ao trem-bala e duas ao sistema bancário, cheques e tarifas.
A consulta sobre os cigarros, de 2017, a segunda de maior audiência da série histórica do "Regulação em Números", versava sobre a rotulagem da propaganda de cigarro. A burocracia da Anvisa entendia que aquelas advertências com figuras cadavéricas já estariam manjadas e eram necessárias novas estratégias para desestimular o consumo.
Mais de sete mil pessoas opinaram. A maioria se identificou com 'cidadãos', mas, pelas manifestações, ficou claro que eram donos de bancas de jornal e pequenos comerciantes que reclamavam das advertências e do prejuízo causado às suas vendas. Eram, sim, favoráveis à mudança nas advertências, mas para derrubá-las e não para reforçá-las, como desejavam os formuladores da agência.
O argumento mais frequente foi o de que a Anvisa estaria interferindo no livre arbítrio das pessoas. O tom das manifestações é o mesmo que, ao longo da campanha, caracterizou a adesão do pequeno comerciante ao bolsonarismo: "Este é um produto legalizado e, portanto, não deve ser imposto a tantas restrições"; "essa proposta é uma afronta ao princípio da livre iniciativa e ao livre arbítrio".
As consultas de maior audiência são aquelas que afetam interesses pulverizados. Na do trem-bala, por exemplo, outra campeã de audiência, as 1,3 mil contribuições são atribuídas por Patrícia Sampaio, outra pesquisadora do "Regulação em Números", aos interesses de comerciantes e lideranças das cidades que seriam cortadas pelo trajeto.
Num setor como petróleo, por exemplo, cuja produção e distribuição estão nas mãos de poucas e grandes empresas, a frequência é mínima. A média de participantes nas consultas públicas da Agência Nacional de Petróleo (ANP) é de apenas quatro, vinte vezes menor do que a registrada na Agência Nacional de Saúde (ANS).
A oferta de participação popular não é proporcional ao aumento de interesse. Desde sua criação, a ANS editou 529 normas, sendo que apenas 61 (9,6%) foram submetidas a consulta pública. Quando realizadas, mais de 70% das manifestações se originaram de operadoras e prestadoras de serviços de saúde. Os relatórios da agência compilam manifestações sem esclarecer se se originam de representantes de empresas, associações de consumidores ou entidades governamentais.
Ao longo dos quatro primeiros meses da gestão Bolsonaro, a relação do Executivo com as agências reguladoras é marcada ora pela paralisia, ora pela ingerência. As indicações de diretores pelo governo anterior não são referendadas. Por outro lado, os ministérios demonstram mais ingerência na atuação das agências, como foi o caso da nova Agência Nacional de Mineração. Depois do desastre de Brumadinho, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, sinalizou disposição em rever as regulações da agência. Na infraestrutura, o ministro Tarcísio Freitas indicou que pretende fundir agências de transporte.
Numa das medidas provisórias deste governo (881), as agências teriam poder mitigado sobre setores que inovam, mas ganhariam, em contrapartida, mais disciplina. Nenhuma mudança seria tão definitiva, no entanto, quanto a aprovação do projeto de lei que tornaria mais transparentes as consultas públicas, uniformizaria as normas das agências e as tornaria mais responsivas às manifestações recebidas. Paralisado no Senado, não há mobilização governista para aprová-lo.
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