Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Acompanhei pela TV a abdicação do imperador Akihito, do Japão, no dia 30 de abril. Os ritos de poder e de autoridade revelam o que é a política nos países que os praticam. Tento entender nossa pobreza no que a isso se refere.
O ex-imperador e sua consorte são intelectuais que, com sua cultura, têm dado um rosto ao seu carisma. Ele tem sido líder e inspiração de um país de grande desenvolvimento científico, técnico e econômico. Se o modelo de sociedade que nos está sendo imposto fosse aplicado lá, o Japão sofreria um imenso retrocesso social e cultural.
Eles, seguindo, aliás, as tradições de seu país, têm grande interesse em agricultura e ambos se dedicam, dentre tantos compromissos, também ao trato da terra com as próprias mãos. Sorte deles não ter por lá um ministro da Educação do tipo que lhes proibisse a sociologia e a filosofia, condenando-os só à agricultura. Para eles, como para outros japoneses lavradores, a agricultura, o arroz, as verduras, as árvores, os peixes são também oferendas, fazem parte da poesia da vida.
Durante sua era, que terminou no dia 30, o ano era inaugurado num encontro com poetas, em palácio, para ali recitarem seus versos, com a participação da então imperatriz, também poetisa, pianista e compositora. Ela musicou vários poemas de seu marido. É autora de um tocante poema sobre a alegria do primeiro aleitamento de seu primeiro filho, o agora novo imperador, também músico, violinista.
O então imperador tinha o hábito de encontrar-se em palácio, no início do ano, com a comunidade científica, agrupada por áreas de conhecimento. Ele é um colega, pois cientista reconhecido, especializado em ictiologia, que fez a classificação científica de oito peixes. É autor de 30 papers científicos. Quando do terceiro centenário de Carl Lineu, em 2007, pai da taxonomia científica, fez uma longa conferência em inglês, em Londres, sobre a vida e a obra desse cientista sueco. O imperador participa de congressos científicos.
No seu encontro anual com os cientistas japoneses, o primeiro grupo a ter suas comunicações ouvidas é o dos pesquisadores das ciências humanas.
Para ele, essas ciências são concebidas como o que realmente são: ciências. Instrumentos de compreensão dos problemas sociais e de formação da consciência científica da sociedade. Como propôs o alemão Hans Freyer e, aqui no Brasil, Florestan Fernandes. Aliás, por isso, preso pelo Exército e, em 1969, cassado pela ditadura e afastado da USP.
Esse interesse do então imperador é mais do que compreensível. As humanas são o meio para explicar e enfrentar os problemas sociais decorrentes das irracionalidades do pensamento unidirecional, cuja economia sufoca este país de mais de 13 milhões de desempregados. No Japão do imperador, o conhecimento é criativo. Aqui querem nos impor o conhecimento copiativo e cúmplice.
Para cumprir o seu errático plano político, o novo regime brasileiro, embutido numa distorção das eleições de 2018, que não foi um plebiscito, declarou guerra à universidade pública, laica e gratuita. Uma guerra obscurantista contra a inteligência. As frentes de ataque são várias. Em São Paulo, um deputado, sem curso superior, propôs uma comissão parlamentar de inquérito contra as três universidades públicas estaduais, a USP, a Unesp e a Unicamp, para questionar o uso de seus recursos, aliás insuficientes.
Por seu lado, após visita a uma universidade privada, o presidente da República chegou a afirmar que a universidade pública brasileira não faz pesquisa científica. Está completamente desinformado sobre o que é a ciência brasileira e o que é a nossa universidade pública, responsável pela maior parte da pesquisa científica no país. Aqui a ciência é de ponta, internacionalmente reconhecida. São públicas, as universidades brasileiras melhor avaliadas nos ranking internacionais.
O ministro da Educação e o presidente minimizam a filosofia e a sociologia. Querem que a escola forme o trabalhador lucrativo, o que se entende. Já a sociologia e a filosofia querem formar o trabalhador pensante, não o brasileiro carneiril. Sem a visão humanista, as ciências duras podem criar robôs, mas não podem criar pessoas.
A mentalidade desumanizada que caracteriza pronunciamentos e ações de membros do governo, sobretudo na área da cultura, do patrimônio histórico e ambiental, é alarmante indicação dos efeitos mentais dessa visão distorcida do conhecimento.
No Japão, o imperador ouve centenas de cientistas e pensadores para iluminar seus horizontes. Aqui o governante ouve um astrólogo, para que lhe adivinhe o recado das estrelas neste eclipse de nossa história. O Brasil ignorante quer pôr de joelhos o Brasil culto e sábio.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
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