Às vésperas de caducar, a Medida Provisória (MP) 868, que estabelece um novo marco legal para o saneamento no país, pode ser salva por um renovado esforço do governo para obter apoio à proposta. A tarefa não parece ser fácil. Nem os dados alarmantes a respeito da situação do saneamento básico no país, divulgados na semana passada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), parecem ter sido suficientes para convencer os parlamentares de que algo precisa ser feito, e rapidamente. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que tentará acertar com os líderes partidários um acordo para votá-la em regime de urgência. Se a iniciativa fracassar, a MP perde a validade.
O IBGE mostrou que o inimaginável aconteceu: apesar de o país não estar vivendo nenhuma guerra nem ter passado por algum desastre natural, está andando para trás em termos de saneamento, com reflexos inevitáveis na saúde da população. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, pouco mais de um terço das moradias não tinha acesso ao serviço de esgoto em 2018, o que significa que 72,4 milhões de brasileiros viviam em casas sem rede coletora, mais do que os 72,1 milhões de 2017. É uma população igual à da França. A coleta de lixo também não avançou. Cerca de 20 milhões de pessoas, ou 9,7% da população, viviam em residências sem serviço de recolhimento de lixo, o mesmo percentual do ano anterior. Continuou igual o percentual de lares com água encanada, de 88,3% do total.
Esses são números médios. A situação é mais precária em algumas regiões. No Norte, 78,2% das famílias não tinham serviço de esgoto e 29,2%, coleta de lixo, quase três vezes a média nacional; e no Nordeste, os percentuais eram de 55,5% e 30,7%, respectivamente, além de 30,9% não terem água da rede geral. Das 21 regiões metropolitanas acompanhadas pelo IBGE, 13 tinham menos de um terço dos domicílios conectados à rede de esgoto, sendo os casos mais dramáticos Teresina, com 88,7% sem rede de esgoto; Natal e Manaus com 75,8% sem rede em ambos os casos. As regiões metropolitanas do Sudeste têm os melhores indicadores, mas o serviço não é universalizado. Em São Paulo, o percentual sem acesso à rede, de 6,7%, embora pequeno, equivale a 1,4 milhão de pessoas. Na região metropolitana do Rio, ficam de fora 861 mil pessoas.
O IBGE atesta que os números estão estagnados desde 2015. A esperança era que a MP do Saneamento abrisse espaço para as aplicações privadas. Dos 5.570 municípios, só 98 têm operação privada de água e esgoto. Responsáveis por 6% do mercado, as empresas particulares investem R$ 418 por habitante, mais do que o dobro da média nacional de R$ 188.
Apesar de ter sido lançada há quase um ano, em julho de 2018, e de ter sido reeditada em dezembro, no fim do governo de Michel Temer, a MP do saneamento praticamente não avançou. A oposição mais visível é a dos governadores e prefeitos, preocupados com suas preciosas companhias de saneamento, que lhe garantem poder na forma de cargos para preencher e votos.
Um dos dispositivos da MP para estimular a abertura do mercado obriga as prefeituras, responsáveis pelo serviço de saneamento, a fazer chamamento público para a implantação de novos sistemas de água ou esgoto, acabando com a preferência das empresas públicas. Para dar escala ao negócio, a administração de Jair Bolsonaro incluiu a criação de microrregiões que podem se agrupar para contratar uma concessionária em comum, viabilizando operações em cidades pequenas, embora já haja empresas privadas operando em pequenos municípios. A questão da remuneração dos ativos não amortizados também foi resolvida, assim como as atribuições da Agência Nacional de Águas (ANA), para pôr fim a uma legislação prolífica, e às vezes contraditória, causada pela existência de dezenas de agências estaduais ou municipais.
Mas o principal foco de resistência é a indução às concessões privadas, que encontram resistência entre governadores e prefeitos, pouco dispostos a abrir mão das empresas públicas de saneamento, com as exceções de São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro e Santa Catarina se juntaram no apoio à MP nesta semana, dando ânimo novo às pretensões do governo federal. O impasse tem repercussões também no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que prevê a universalização do saneamento no país até 2033. Já se fala na revisão do Plansab, com o adiamento desse prazo para um distante 2060.
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