- Folha de S. Paulo
Defensores da polarização não reconhecem co-responsabilidade em construir o adversário
Os críticos da polarização são muitas vezes acusados de defender uma política centrista insossa, com a dissolução dos polos em compromissos de meio-termo sem impacto. Eles matariam o antagonismo que é a essência da democracia e adotariam uma postura irresponsável de indiferença cínica diante das injustiças.
Faz parte da miopia polarizada conceber uma espécie de eixo ligando os polos, supondo que se não se está nas pontas, então se está no centro. Faz parte também dessa clausura cognitiva supor que a crítica da intolerância política é falta de força moral para se indignar e agir.
Os polarizados não apenas são incapazes de reconhecer a independência sem confundi-la com moderação; são também incapazes de ver o seu próprio papel na construção do adversário. Não conseguem ver que o confronto no qual se engajam é de natureza relacional, de maneira que são co-responsáveis pelo que acontece do outro lado.
Isso se dá, em primeiro lugar, porque os dois lados estão conectados pela intensidade do sentimento, de maneira que a força da minha repulsa é vivida por quem a recebe como agressão injusta, gerando uma contrarreação de intensidade equivalente. Isso faz com que o ciclo de intolerância se retroalimente num moto-contínuo.
Além disso, a autoidentidade de um lado está amarrada com a identidade atribuída ao outro, de maneira que, para me enxergar como antifascista, preciso considerar meu adversário fascista, da mesma maneira que, para me ver como homem de bem, preciso ver aqueles a quem me oponho como vagabundos e ladrões. Eu projeto no meu adversário a negação da maneira como me vejo, e essa projeção geralmente não está bem ancorada na realidade.
Para que essa projeção seja crível e possa sustentar minha autoimagem, eu preciso caricaturar o adversário, isto é, pegar alguma característica deletéria dele e fazer ela valer pelo todo, como numa metonímia.
Só que, ao ressaltar no campo do adversário algum traço ou algum ator particularmente repugnante, ele se fortalece. Ele pode agora se promover entre os seus, dizendo com orgulho: "Vejam como me odeiam: sou o verdadeiro antieles". Não foi apenas por isso, mas foi também assim que terminamos elegendo para presidente um troglodita apologista da tortura.
Essas dinâmicas de grupo são uma espécie de inversão da máxima do pequeno príncipe (o personagem do livro de Saint-Exupéry, não o deputado do PSL): não seríamos apenas eternamente responsáveis por quem cativamos, mas também eternamente responsáveis por quem confrontamos.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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