- Folha de S. Paulo
Gritos de Fora Bolsonaro devolvem vida às ruas vazias
De boné, roupas coloridas, cordões no pescoço, Erisvaldo Correia dos Santos, um cearense do Crato, incorporou-se à paisagem da Glória, do Catete e do Flamengo, com seu sorriso largo e voz potente: "Três reais para comer a minha rosca! Gente, a minha rosca é larga e doce!".
Nem todo mundo acha graça, e ele já levou umas bolsadas, num ataque de senhoras que saíam da igreja no Largo do Machado. Mas jamais eu tinha visto o Homem da Rosca tão triste como nos últimos dias. Ele continua acordando às cinco da manhã, para preparar a iguaria com açúcar e canela. Antes da quarentena, chegava a vender 400 roscas. Hoje, nem 10.
Exemplo de empreendedorismo estudado nas escolas de marketing, Erisvaldo integra um setor de trabalhadores dos mais penalizados com a crise: os informais. Oficialmente eles são cerca de 40 milhões (mas a impressão é que há muitos mais). Destes, 33% estão no grupo de maior risco: têm acima de 60 anos e sofrem de males crônicos. A Câmara dos Deputados aprovou um projeto que prevê o pagamento de uma renda emergencial de R$ 600 aos informais --o governo queria dar R$ 200.
O pregão fescenino do Homem da Rosca corta o silêncio e a solidão no Flamengo. De certa maneira, a insistente presença dele representa a normalidade dentro da anomalia. Com o isolamento social, o prazer de se perder na multidão da cidade desapareceu. Está vazia a rua do Ouvidor. Como las ramblas de Barcelona, a Times Square de Nova York, a avenida del Libertador em Buenos Aires, a praça São Pedro no Vaticano, o bairro de Shibuya em Tóquio. Sem as pessoas, a alma encantadora de que falava o João do Rio se desprendeu das ruas.
E no entanto ela volta, pontual, a cada noite de janelaço: a algaravia, o bater de panelas e frigideiras, as cantorias, as buzinas, o som de um berrante desgarrado, os xingamentos, o grito de "Fora, Bolsonaro".
Nenhum comentário:
Postar um comentário