- O Globo
É preciso definir qual limite que o hoje presidente brasileiro pode ir até que seja bloqueado pelas armas da democracia
Como expressar o desalento de ter na presidência da República, especialmente num momento de grave crise como esse, uma pessoa capaz de dizer essa frase em público:“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento. Essa é a vida, é a realidade. Nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”.
Há certas coisas que se pode pensar, mas nosso superego impede que digamos em voz alta devido a um processo civilizatório a que somos submetidos no convívio social, como já ensinou Freud. Mas Bolsonaro, como já ficou provado em outras ocasiões, não tem superego.
A comparação com os automóveis parece ser uma fixação desse governo, e a falta de empatia, permanente. No início do mandato, quando se discutia a liberação da posse de armas pelos cidadãos, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, também usou a comparação de automóveis com as armas.
Mais limitado, o também ministro Ônix Lorenzoni comparou os revólveres com os liquidificadores. O objetivo era o mesmo de hoje do presidente Bolsonaro, relativizar as eventuais mortes ocasionadas pelas decisões governamentais. Embora estudos mostrem que a liberação das armas para os cidadãos provoca mais mortes do que proteção, desta vez é mais grave, pois há um conjunto de evidências científicas, como o estudo divulgado pelo Imperial College of London, que demonstra que a diferença entre o isolamento social rigoroso e uma estratégia mais branda de proteção seletiva sobre os idosos e os doentes pode significar até 1 milhão de vidas perdidas a mais em pouquíssimo tempo no caso do Brasil.
Há uma ressalva fundamental no nosso caso: o estudo foi feito com base no que está ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos, e não leva em conta a existência de favelas, a falta de abastecimento de água ou saneamento, e outras mazelas com que as populações mais carentes convivem.
Os estudos do Imperial College of London foram responsáveis pela mudança de atitude do governo de Boris Johnson, que tentou uma abordagem menos drástica da crise do Covid-19 imaginando que a população ganharia anticorpos para combater o novo vírus, e teve que desistir devido ao aumento exponencial de casos de contaminação e mortes.
Temos também o caso que já se tornou clássico da Itália, - e dentro dela de Milão, - que tentou minimizar os efeitos da pandemia e acabou se tornando o epicentro de uma tragédia humanitária. Como já temos esses exemplos, a posição do presidente brasileiro torna-se ainda mais inaceitável.
De nada nos servirá que ele venha dentro de um mês se desculpar (se é que é capaz disso) como fez o prefeito de Milão, que ontem, diante da catástrofe que se abateu sobre seus cidadãos, admitiu publicamente que desprezou os perigos da Covid-19.
Mais grave é que o grau de irresponsabilidade é tamanho que o governo brasileiro é capaz de encomendar e distribuir pelos canais das redes sociais vídeos defendendo que o país não pode parar, mesmo slogan publicitário de Milão, e, diante da repulsa que geraram nos cidadãos de bem, alegar que não foram aprovados pela Secretaria de Comunicação, e, portanto, não são oficiais.
Para quem tem dentro do Palácio do Planalto um chamado “gabinete do ódio”, que opera nas sombras para disseminar boatos e fake News, esta não é uma postura surpreendente. O que é preciso definir, de acordo com as instituições que zelam pela democracia brasileira, como o sistema Judiciário, e o Congresso, é qual o limite que o hoje presidente brasileiro pode ir até que seja bloqueado pelas armas da democracia.
Bolsonaro já nem mesmo se dá ao trabalho de tentar disfarçar seus objetivos. Perguntado pelo apresentador José Luis Datena se estaria disposto a dar um golpe, em vez de negar peremptoriamente, Bolsonaro respondeu: “Quem quer dar um golpe não vai falar que vai dar”.
Como sempre, sem superego.
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