- Folha de S. Paulo
Em nome da coerência, a conta da crise precisa chegar às grande fortunas
A vida ou a economia? Sob o bafo do negacionismo oscilante de Trump e do plágio rústico tentado por Bolsonaro, uma disjuntiva sem sentido contaminou o debate público.
Economia é vida: inexiste a alternativa de proteger a saúde pública às custas do desligamento indefinido da produção e do consumo. O humanismo com vista para o mar é tão nocivo quanto o negacionismo que nasce do desprezo pela ciência.
Além de indivíduos com espessos colchões financeiros, há profissionais de empresas que adotaram o home office, empregados de setores que seguem funcionando, funcionários públicos estáveis.
Desses estratos brotam torrentes incontroláveis de humanismo. Vidas não têm preço, valem qualquer sacrifício do vil metal, explicam-nos os que não sacrificarão seus empregos ou meios de sobrevivência. Mas, apesar deles, economia é vida.
O desligamento extensivo ameaça provocar uma depressão econômica mais funda que qualquer outra na história. Isso mata, em massa.
No mundo, centenas de milhões seriam transferidos da pobreza à miséria, caindo como moscas sob as moléstias causadas pela subnutrição.
Um patamar acima, entre a baixa classe média, a desesperança lançaria milhões ao túnel escuro da bebida e dos opioides, a epidemia social que reduziu a expectativa de vida no Meio-Oeste americano. “A cura não pode ser pior que a doença” —a frase de Trump é tão óbvia quanto incontestável, ainda que se origine de motivações abjetas.
Bolsonaro perdeu: não é “uma gripezinha”. A estratégia do confinamento destina-se a criar um parênteses para o reforço do sistema de saúde, a identificação de clusters de transmissão do vírus e o isolamento dos infectados.
Mas ela tem nítidos limites temporais —e precisará ser flexibilizada bem antes do declínio da pandemia. A transição à etapa seguinte exige a mudança do clima sociopolítico, conflagrado pela guerra estúpida travada entre os “arautos da vida” e os “campeões da economia”.
O luxo do humanismo gratuito não é para os que ganham hoje a comida e o aluguel de amanhã. O intervalo do confinamento desaba como avalanche sobre os mais pobres.
Drauzio Varella implora pela distribuição imediata de cestas básicas. Isso é vital —mas insuficiente. Todos os que dependem do setor de comércio e serviços enfrentam uma catástrofe. Na inevitável recessão causada pela pandemia, os negócios e empregos destruídos agora não serão restaurados tão cedo. Armínio Fraga clama por um vasto programa de empréstimos subsidiados. Isso é indispensável —mas, ainda, muito pouco.
As medidas econômicas anunciadas pelo governo implicam perdas colossais de emprego e renda, que se distribuem de modo perversamente desigual, descarregando a conta nas costas dos mais fracos.
A equação cínica que as orienta tem duas partes incongruentes. A primeira, expressa pela ordem sanitária de fechamento do comércio e serviços, suspende as regras da economia de mercado. A segunda, expressa pelas novas linhas de crédito, baseia-se precisamente nessas regras. É hora de exigir coerência: a conta precisa chegar às varandas abertas para o mar.
Economia de emergência nacional, no lugar de economia de mercado, significa: 1) garantir o salário mínimo aos trabalhadores informais; 2) proibir legalmente demissões durante a emergência, que perdurará além do isolamento; 3) assegurar a sobrevivência dos pequenos e médios negócios fechados compulsoriamente por meio de empréstimos garantidos pelo Tesouro, de longo prazo e a juros negativos.
O governo não inventa dinheiro. O estouro da dívida pública seria pago com inflação ou austeridade extrema —isto é, pelos pobres. A alternativa encontra-se num imposto emergencial sobre grandes fortunas, bancos e elevados patrimônios financeiros, além da redução temporária de altos salários do funcionalismo público. Humanismo, ok, mas sem vista para o mar.
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