quarta-feira, 18 de março de 2020

Bolsonaro tem de cumprir seu papel contra o coronavírus – Editorial | O Globo

Que o pedido de decretação do estado de calamidade indique nova postura do presidente

Quando ganhou a eleição, o ex-capitão e deputado do baixo clero Jair Bolsonaro começou a ser apresentado à opinião pública no exterior como um político de extrema direita e nacionalista. Em pouco tempo, foi colocado no escaninho do nacional-populista Donald Trump e similares. Mas nestes últimos dias, com o avanço do coronavírus no Brasil, já previsto pelo seu próprio governo, Jair Bolsonaro conseguiu ficar isolado no mundo de forma patética.

Até mesmo Trump, que desdenhara do “vírus estrangeiro”, decretou emergência nacional nos Estados Unidos e passou a aparecer à frente do Executivo no anúncio ao vivo de seguidas ações econômicas e de saúde pública. O francês Emmanuel Macron declarou em rede nacional “guerra” ao patógeno, o mesmo acontecendo em incontáveis países. Já o presidente brasileiro tachou toda esta mobilização de “histeria”. Criticou ontem governadores por tomarem medidas rígidas, considerando que a “histeria” prejudica a circulação das pessoas e assim derrubará a economia. Ainda arrematou comparando a pandemia a uma gravidez, porque a criança vai nascer e “vai passar”. Uma enorme demonstração de desconhecimento do que acontece. Se não houver quarentenas e isolamento, o vírus afunda o país e o mundo numa crise bem mais grave. Por isso, todos seguem este modelo.

O presidente brasileiro entrou em modo persecutório — sem surpresa — e interpretou como “golpe” a oportuna iniciativa de lideranças do Congresso — presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre — e dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, presidente e vice do Supremo, de se reunirem na segunda-feira. Também participou do encontro, entre outros, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, dando uma pista do tema óbvio da reunião.

Já circulavam rumores de que o competente Mandetta caíra em desgraça perante o ex-capitão, porque, cumprindo a sua função, o ministro tem conversado com o governador de São Paulo, João Doria, adversário político do presidente. Ora, isso não pode ser motivo para o ministro da Saúde não se articular com o governador do maior estado brasileiro, com 44 milhões de habitantes, onde haverá o maior número de infectados do país em valores absolutos.

A coincidência da crise com a morte de Gustavo Bebianno e a divulgação de uma carta que o ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência deixou para Bolsonaro ilustram o porquê de o presidente transformar o Planalto em um bunker das trevas, contra a Ciência, alheio ao que ocorre no país e no planeta. Bebianno, derrubado em uma das conspirações que filhos de Bolsonaro destilam desde a campanha, escreveu duas frases emblemáticas: “O senhor precisa romper esse ciclo de ódio”; “O senhor cultiva e alimenta teorias de conspiração, intrigas e ódio”(...).

Os poderes da República precisam mesmo se articular no enfrentamento do coronavírus, sem contar com o presidente da República, se ele continuar em surto. Rodrigo Maia, Alcolumbre, Toffoli, Fux e outros agiram como se espera de autoridades com responsabilidade pública. Enviaram uma mensagem positiva ao país, ao se reunirem depois da demonstração de alheamento de Bolsonaro no domingo. Se há inépcia no Executivo, o Estado tem como defender a sociedade em momentos críticos.

Bolsonaro pedirá ao Congresso que decrete estado de calamidade pública, para poder descumprir a meta fiscal, porque a crise requer mais gastos. Bom sinal.

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