- Folha de S. Paulo
É preciso definir critérios a serem utilizados se a situação ficar realmente ruim
Eu provavelmente pegarei a covid-19 em breve. É que minha mulher, que é médica intensivista e cardiologista, foi convocada para atuar numa das UTIs do SUS que receberão pacientes críticos com a nova moléstia.
Considerando que a taxa de infecção dos profissionais de saúde é relativamente alta e que boa parte das transmissões ocorre dentro de casa, a sorte da família está lançada. Espero que sejamos todos tão hígidos quanto penso que somos para passar pela doença sem problemas.
O que gostaria de discutir hoje, porém, não é o discreto aumento do risco de minha família, mas um pepino ético com o qual teremos de lidar.
Pelo menos por enquanto, não há nada que permita afirmar que nossa curva epidêmica será muito diferente da da Itália. Adoraria ser desmentido pelos fatos, mas não podemos descartar a possibilidade de vivermos uma situação semelhante à dos italianos, que, diante da falta de vagas em UTI, tiveram de definir à beira do leito quem iria para o ventilador e quem receberia cuidados paliativos —uma das piores situações por que um médico pode passar.
Ali, a pressão sobre os profissionais foi tanta que a associação de medicina intensiva se viu obrigada a divulgar um documento com as diretrizes éticas para a tomada de decisões “em condições excepcionais”.
O texto não traz, é claro, nenhuma inovação filosófica. Reafirma princípios bioéticos clássicos que recomendam dar preferência a pacientes com maior probabilidade de sobreviver e que tenham mais anos de vida saudável pela frente, além de detalhar os procedimentos a serem adotados pelas equipes.
No espírito de antecipar dificuldades, penso que caberia a algum órgão como os conselhos de medicina ou o Ministério da Saúde repassar os critérios a ser utilizados se a situação ficar realmente ruim. Escolhas são inevitáveis. Podemos até fingir que o problema não existe, mas isso não o faz ir embora.
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