- O Estado de S.Paulo
Há conexão com o projeto fascista que se manifesta na Esplanada dos Ministérios
O que aconteceria se milícias rivais se associassem para abrir quiosques de agiotagem pelas esquinas do Brasil, emprestando dinheiro barato para todo mundo, sem pagar imposto e sem legalizar suas operações? O que aconteceria se distribuíssem cédulas falsas, mas ninguém ligasse? O que aconteceria se os desavisados afluíssem em massa para tomar empréstimo e fazer tilintar a caixa registradora da bandidagem? O que aconteceria se os quiosques, além de dinheiro suspeito, distribuíssem panfletos para xingar o sistema bancário de ladrão da Pátria e acusar o Poder Judiciário de ser cúmplice da ladroagem dos banqueiros? O que se passaria se esse novo negócio ilegal contasse com o presidente da República como seu garoto-propaganda? E se, para completar, uma turba saísse pelas praças do País, travestida de seleção canarinho, estapeando bancários a caminho do trabalho?
Ora, até aí, você dirá, a resposta é fácil: o que aconteceria seria o caos – o caos generalizado e a convulsão social. Só que esse caos não nos ameaça, você dirá também, pois os bancos, para o bem e para o mal, sabem se defender. Mas, atenção: e se, em vez das instituições bancárias, a vítima dos novíssimos quiosques clandestinos das milícias fosse, não as instituições bancárias, mas a instituição da imprensa? Agora a pergunta deixa de ser hipotética. Na verdade, se você olhar a cena nacional, verá que isso já está acontecendo. Existe, de fato, uma guerra aberta contra algo que talvez seja ainda mais valioso para uma sociedade livre do que o capital bancário (ou financeiro): o capital simbólico de credibilidade e de independência que o jornalismo representa. E aí? O que nos vai acontecer?
O corneteiro-mor à frente da guerra é o presidente da República. Seus seguidores, bem adestrados, aprenderam a ferir o núcleo do valor sobre o qual a imprensa se sustenta. Qual é o serviço essencial que um bom jornal oferece ao público? Informações dignas de confiança. Com esse serviço o jornal conquista a confiança do público e dessa confiança extrai todo o valor que poderá ter – o valor econômico, inclusive, mas não apenas ele. Pois agora os quiosques criminosos dispõem de armamento para enfraquecer esse valor. Com relatos fajutos produzidos em larga escala, operam para sufocar, muitas vezes com sucesso, a repercussão das reportagens de qualidade.
Estamos falando de uma portentosa, ainda que ilegal, indústria de desinformação. Bem arquitetada, essa indústria por trás da guerra mantém uma linha produtiva especialmente dedicada a produzir “conteúdos” virais que corroem a honra de empresas jornalísticas e de jornalistas respeitados. Os ultrajes se alastram, impulsionados por direitistas festivos que trabalham de graça para o crime. Nas redes sociais, cada ofensa baixa contra uma redação profissional ou contra um repórter autoriza e incentiva os capangas que esbofeteiam jornalistas no meio da rua. O discurso do ódio virtual explode em violência material. Enquanto isso, o corneteiro-mor ordena, aos berros, que os repórteres profissionais calem a boca. Grita e repete: “Cala a boca!”.
Por certo, a democracia procura defender a imprensa – entre outras razões, porque ela mesma, democracia, já desponta como a próxima vítima. Mas isso não basta. A imprensa precisa fazer mais por si mesma. Ela deve se antecipar e dar combate à indústria criminosa que a elegeu como primeira inimiga. Nesse ponto, as redações devem mudar de atitude. Não que devam mover uma outra guerra, não que precisem se orientar por metáforas bélicas. A forma adequada que a imprensa tem para se defender é fazendo jornalismo, com base em dois ingredientes que se interligam e que já são velhos conhecidos do ofício: reportagens focadas e de pensamento crítico.
As reportagens focadas investigariam sistematicamente a economia paralela e o organograma da indústria das fake news. Quem lucra com a difusão de mentiras nas redes sociais? De que maneira? Quais as cifras implicadas aí? Quem comanda os centros de produção que abastecem os direitistas festivos? Quem são os gerentes? Onde atuam? Quais os elos entre essa atividade clandestina e a organização política que dá sustentação ao bolsonarismo? Esta deveria ser não uma das, mas a pauta prioritária para a imprensa jurada de morte.
Em segundo lugar, as redações não podem abrir mão de pensamento crítico. Uma redação só é uma redação quando pensa à frente da sociedade. E, hoje, uma redação pensante é uma redação dedicada a compreender os nexos entre a indústria da desinformação e o projeto fascista que já pôs as mangas de fora na Esplanada dos Ministérios. Sem compreender o objeto, não há como cobri-lo. Mais do que desmentir as fake news, trata-se de desmontar a indústria que as fabrica em prol do autoritarismo anti-imprensa.
A única forma de dissolver a treva é jogar luz contra ela. Os jornais, que só brilharam quanto jogaram luz sobre os fatos e por dentro dos fatos, são convocados agora a apontar o farolete na cara (e no traseiro) do inominável. Será um bom começo para reescrever um triste fim.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
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