sexta-feira, 8 de maio de 2020

Mundo celebra fim do conflito às vésperas de nova ordem

O mundo celebra hoje os 75 anos do fim da 2ª Guerra Mundial no continente europeu. Analistas comparam a discussão da nova ordem mundial pós-conflito com a situação que terá de ser enfrentada pelo países diante do atual colapso da economia global, informa

75 ANOS DO FIM DA 2ª GUERRA

Pandemia leva Europa a celebrar data com discrição e a traçar paralelos históricos

VIVIAN OSWALD Especial para O GLOBO

LONDRES - Enquanto ainda conta os mortos da pandemia do novo coronavírus, o mundo celebra hoje a portas fechadasos75anosdofimdaSegunda Guerra Mundial na Europa, com a rendição da Alemanha. Tradicionais paradas e desfiles em amplas avenidas do continente darão lugar a homenagens mais intimistas. Muitas delas on-line. Ironicamente, a geração que viveu e lutou o conflito mais sangrento do século passado é também a mais atingida pela Covid-19.

UMA NOVA ORDEM
Nos últimos quatro meses de crise sanitária, líderes europeus não economizaram em expressões tomadas de empréstimo da guerra. As comparações tornaram-se incontornáveis depois que metade da população do planeta foi submetida a uma dolorosa quarentena, enquanto assiste à morte dos seus e ao colapso da economia global. E, como também ocorreu após silenciarem as armas em 1945, entra em discussão uma nova ordem pós-coronavírus.

— Nosso mundo continua vivendo episódios que nos lembram das profundas perturbações de guerra do século XX. De repente, o interesse público exige a limitação do trabalho e do lazer. Governos determinam que cada um faça a sua parte. Estratégias de empresas, planos familiares e objetivos pessoais são transtornados. Cada cidadão tem que recalibrar ambição pessoal, vínculos familiares e necessidades da sociedade. Há mortes e perdas. Alguns fazem sacrifícios, enquanto outros são sacrificados — afirma o economista Mark Harrison, coautor do livro “Economics of the Second World War Seventy-Five Years on” (“Economia da Segunda Guerra Mundial: 75 anos depois”, em tradução livre), que acaba de lançar com Stephen Broadberry, professor de História da Economia da Universidade de Oxford.

Três quartos de século se passaram e a agenda do pós-guerra volta à pauta dos líderes internacionais. Fala-se em uma nova ordem mundial, que deve mudar a face da arquitetura institucional erguida nos pilares do consenso que sucedeu o conflito, em esforços coletivos de reconstrução e na prioridade à proteção do cidadão. Foi depois da Segunda Guerra — terminada oficialmente em 2 de setembro de 1945, após a rendição do Japão —que surgiram os organismos multilaterais internacionais, pacotes bilionários de estímulo ao crescimento e o Plano Marshall para a reconstrução dos países aliados na Europa, liderado pelos americanos.

Isso sem falar no nascimento no Estado de bem-estar social no Reino Unido, uma das grandes vitórias do país que perdeu o império na guerra, mas ganhou o NHS, o sistema nacional de saúde que inspirou o SUS no Brasil, e de que os britânicos se orgulham até hoje.

Para o presidente do centro de estudos Chatham House, Jim O’Neill, a recuperação, agora, cria a oportunidade de se pensar um sistema mais igualitário.

— Uma alternativa mais escandinava me parece uma opção — disse o economista, que trabalhou a maior parte de sua vida profissional no mercado financeiro, em seminário sobre o futuro pós-pandemia esta semana.

Desta vez, porém, especialistas não veem os americanos na liderança da reconstrução, como no pós-guerra, quando conduziram os planos de ajuda às economias devastadas. O país do republicano Donald Trump evita caminhos que não sejam seu mote de campanha “América em primeiro lugar”. Há tempos ele trava uma queda de braço com os organismos multilaterais do pós-guerra. Em meio à pandemia, ainda determinou o fim de repasses de fundos à Organização Mundial da Saúde(OMS).

Líderes pelo mundo se ressentem. Mas devem buscar uma solução em comum pela volta de uma (nova) normalidade econômica. Nesse contexto, a China — país arrasado pela Segunda Guerra e que cresceu como nenhum outro desde então —tenta sobressair. Foi o primeiro epicentro da atual epidemia, e tudo indica que o primeiro a sair da crise.

—A China já era forte. Sai da crise tão ou mais forte. Mas não será o novo Estados Unidos. Nem os Estados Unidos são mais os Estados Unidos. Ainda que a ajuda financeira chinesa seja importante no curto prazo, é um país com um modelo de liderança diferente, que não sei se será produtivo no longo prazo —afirma Harrison.

Analistas reconhecem que é cedo para contabilizar os danos causados pela Covid-19 mundo afora e para se ter certeza de que o impacto será comparável ao de 1945. Harrison diz que serão consequências de pelo menos uma “pequena guerra”. Até agora, foram quase cinco meses de crise. A Segunda Guerra durou seis anos e deixou cerca de 70 milhões de mortos.

Nestes 75 anos, um exercício de revisão foi feito muitas vezes por quem se debruçou sobre a história do conflito. A guerra de narrativas dos Aliados, vitoriosos, e do Eixo, derrotado, também contribuiu para o debate. O professor de História Evan Mawdsley, da Universidade de Glasgow, autor do livro “World War II: a new history” (Segunda Guerra Mundial: uma nova história), defende que o conflito foi mais longo do que se imagina e foi uma disputa entre uma velha e uma nova ordem mundial. Teria começado em julho de 1937, com a guerra sino-japonesa, provocada pelo Japão, e não em 1939, após a invasão da Polônia pela Alemanha nazista, em 1º de setembro.

PRAÇA VERMELHA VAZIA
Para Mawdsley, os EUA foram os grandes vencedores: saíram-se bem, lideraram a recuperação global, projetando-se como a grande potência do século XX. Mawdsley defende que os soviéticos perderam no longo prazo porque, embora tenham deixado o conflito como a outra superpotência, seus esforços e gastos de guerra estariam por trás do colapso econômico e do regime a partir da década de 1980.

— Hoje, é um país com uma população menor que a dos Estados Unidos e com uma economia decadente —afirmou o professor.

Diante da pandemia do novo coronavírus, não haverá festejos públicos pela Europa. No Reino Unido, será divulgado um pronunciamento da rainha Elizabeth II às 21h hoje. É o mesmo horário em que seu pai, o rei George VI, anunciou pelo rádio o fim da guerra naquele 8 de maio de 1945.

Na Rússia, quinto país mais afetado pelo novo coronavírus, a grandiosa parada militar da vitória, realizada tradicionalmente em 9 de maio (o dia do fim da guerra no país porque Stalin quis uma segunda cerimônia de rendição), foi adiada pelo presidente Vladimir Putin para o final de 2020. Para não passar em brancas nuvens, porém, a parte aérea da parada está mantida e terá 75 caças e helicópteros.
Analistas não veem os EUA na liderança da reconstrução do mundo pós-pandemia

COLETÂNEA MOSTRA IMPACTO DO CONFLITO NO NORDESTE

Artigos de historiadores revelam como presença das bases americanas tensionou o cotidiano de cidades como Natal e Recife

Quando se fala da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, vêm de imediato à mente os cerca de 450 pracinhas que morreram lutando ao lado dos Aliados em solo europeu. Menos conhecidos, no entanto, são os impactos do conflito em território nacional. Racionamentos, censura e redes de espionagem tornaram-se parte do cotidiano de milhares de brasileiros, sobretudo dos nordestinos.


O Nordeste foi de suma importância para a participação brasileira na guerra. De frente para a África e relativamente perto da Europa, era estratégico para que os Aliados conseguissem agir com mais eficiência para derrotar o Eixo. Não foi à toa que todas as capitais, de Salvador (BA) a São Luís (MA), tiveram bases americanas em seu território, instaladas a partir do fim de 1941, sendo as duas mais importantes a base aérea Parnamirim Field, em Natal (RN), e a base naval Fox, em Recife (PE).

A historiografia oficial detalha os flertes de Getúlio Vargas com os nazifascistas, a aproximação dos americanos e o ataque alemão ao navio mercante Baependi, catalisador da entrada brasileira na guerra em agosto de 1942. Projeção menor, no entanto, é dada ao impacto do conflito na vida local —e é essa lacuna que a coletânea “Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial” (2019, LCTE editora) busca suprir, reunindo pesquisas de 15 estudiosos da região.

— A guerra também foi vivenciada aqui, não apenas pelos pracinhas enviados para a Itália — conta ao GLOBO a historiadora Flávia de Sá Pedreira, professora do Departamento

de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e organizadora do livro.

CONTRASTE SOCIAL
Nenhuma cidade brasileira talvez tenha sido tão afetada quanto Natal. No extremo leste do país, Parnamirim Field, a maior base aérea americana em território nacional, centralizou o transporte aéreo e a vigilância dos aliados no Atlântico Sul, facilitando o transporte de recursos materiais e humanos para a África, a Europa e o Pacífico. Segundo o historiador Francisco César Ferraz, a cidade, apelidada de “Trampolim da Vitória”, foi considerada um dos quatro pontos de maior importância estratégica no mundo, ao lado do Canal de Suez e dos estreitos de Gibraltar e Dardanelos.

Apesar de a historiografia oficial mostrar uma aparente harmonia entre forasteiros e locais, a relação nem sempre foi pacífica. Inicialmente cordial, as tensões se acirraram com a convivência e foram particularmente acentuadas com os racionamentos.

Para a classe alta, a presença estrangeira foi como um passaporte para a cultura americana: filmes, músicas e produções dos EUA disseminavam os ideais ianques. O Brasil também era uma grande oportunidade comercial.

— Essas cidades eram pequenas, provincianas. Os americanos trouxeram as novidades, o consumismo para os ricos, mas isso acentuava o contraste social na capital potiguar —diz Flávia Pedreira.

As dificuldades impostas pelos blecautes, racionamentos e aumento do custo de vida contrastavam com o discurso da ditadura do Estado Novo para mobilizar a população nos esforços de guerra. Nesta frente, a censura contra rádios e jornais exercia um papel central. Com a censura, há uma lacuna de registros sobre como o conflito afetou o cotidiano, que agora os estudiosos da região vêm buscando preencher.

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