O Parlamento e o governo sabem que um dos legados da pandemia é o aumento da desigualdade social. Famílias sem acesso a recursos financeiros perdem renda e emprego, com seus filhos fora da escola, lutando pela sobrevivência. Além disso, não temos orçamento público aprovado nem planejamento financeiro para ajudar essa parcela significativa da população brasileira. É neste cenário que o presidente da Câmara resolveu pautar projeto que institui a independência política do Banco Central, o que tende a aumentar, mais ainda, essa desigualdade.
A
proposta é moralmente perversa e deve ser rejeitada, pois a
independência política de um Banco Central aumenta a já enorme
barreira que separa ricos e pobres. Essa é a conclusão de pesquisadores do
Banco Mundial em estudo publicado este ano a respeito
do impacto da independência dos bancos centrais sobre
a desigualdade:“Does Central Bank Independence Increase Inequality?”.
Com sólida base teórica, os estudiosos do
banco demonstraram a existência de correlação entre a
independência do Banco Central e a desigualdade social. Chegaram
a três conclusões de fácil compreensão.
Primeiro, a independência dos Bancos Centrais limita o alcance da política fiscal, o que limita a capacidade de um Governo para distribuir recursos. Segundo, incentiva a desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, beneficiando os investidores em bolsa, na medida em que infla os valores dos ativos negociados no mercado. Terceiro, promove indiretamente políticas que enfraquecem o poder de negociação dos trabalhadores, com o objetivo de conter pressões inflacionárias.
A
autonomia política do Banco Central é uma pauta que inundou os países
industrializados na década de 1970, ajudando a fomentar, na
academia, a tese da superioridade da independência dos bancos
centrais. Naquele período, muitas democracias aprovaram normas para
conferir autonomia a suas autoridades monetárias, com o objetivo de tornar
mais efetivo o controle das taxas de juros.
Depois
da crise financeira de 2008, o cenário mudou bastante. Hoje os bancos
centrais têm mandato que extrapola, de longe, aquele papel
clássico de cinquenta anos atrás, em que as autoridades
desses tinham, como única missão, executar a política monetária
via definição da taxa básica de juros da economia.
Os bancos centrais modernos
estão atuando na política monetária em coordenação com a política fiscal,
injetando dinheiro para aquecer a economia. O projeto em discussão na Câmara
dos Deputados chega a criar um mandato a
mais para o nosso BC: promover crescimento e emprego. Esse novo arranjo
institucional da política monetária é incompatível com o argumento da
soberania política para o esse banco.
No
cenário atual, a discussão sobre projetos para garantir independência política
para o BC está completamente fora de hora. O Brasil vive uma
pandemia das mais graves da história, com hospitais do SUS abarrotados
de pessoas infectadas pelo coronavírus. Em algumas localidades, faltam balões
de oxigênio para manter pessoas respirando. E o novo presidente da Câmara
resolve mostrar serviço, tentando aprovar uma das reformas menos relevantes
para o enfrentamento da crise.
Claramente
estamos perdendo o foco ao discutir independência do Banco Central, justamente
agora. A energia e o tempo do Congresso deveriam estar voltados para a
aprovação, antes de mais nada, do
orçamento, e discutir como viabilizar um socorro emergencial
para as famílias que estão lutando pela sobrevivência. Nada é mais importante
no momento.
Neste
cenário, o Congresso deveria
rejeitar qualquer proposta que possa promover maior desigualdade social. A pandemia
já está atuando nessa direção, e o que temos que fazer no Parlamento
é combater a desigualdade, como cabe a um
poder autônomo da República.
*Jose Serra (PSDB-SP) é senador da República. Foi ministro da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), ministro das Relações Exteriores durante o governo de Michel Temer (2016-2017), governador de São Paulo e prefeito de São Paulo.
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