Quando
se formam maiorias predatórias, algo de atentatório à democracia emerge
Se
o Executivo quiser humilhar a Câmara por considerar ridículo ter de
respeitá-la, a maioria se esfarela. As conveniências venceram, mas como prego
mal pregado na parede. Se o presidente não souber lidar com o poder, o humor do
Legislativo não vai espelhar o do Executivo. E teremos o parlamentarismo do
Centrão.
A
concha acústica que seria colocada no ponto mais alto do terreno para projetar
o grito de manifestantes para dentro do Congresso jamais foi construída. Mas o
espelho d’água para desencorajar a multidão a invadir o prédio, esse, sim, foi
aberto.
Senado
e Câmara elegeram seus novos presidentes sob a indiferença dos brasileiros. No
Senado não foi tanto vitória do governo. Foi o Senado, velho e sem se fazer de
caduco, que escolheu um homem jovem, gentil, associativo para enfrentar uma
política totalmente sem imaginação. O belo discurso de Simone sobre o mar, barcos
e remos se perdeu nas ondas de procuradores imaturos e de um juiz que, se foi
duro para perseguir grandes, se viu menor diante de um pequeno. Talvez por
isso, a poesia logo foi suplantada pelo discurso de formatura do melhor aluno
da turma de 2018.
Um
senador sem freios apurou: Simone
para lá, Rodrigo para cá, depois morreu. Que gente! Ninguém poderia
imaginar que assim contassem votos no Senado da República.
Na
Câmara foi diferente. Houve boxe, com socos combinados e frases dirigidas para
acalmar a boa consciência de traidores engajados. SUS, rede de proteção social,
pauta emergencial, cadeira giratória, todos conheço por nome. Clichês
endereçados a aplastados partidos. Uff!
A matemática é inexorável. Dos 211 do bloco de Baleia, 145 votos ele teve. Assolador. Com 247 em seu bloco, Lira obteve 302 votos, revelando que os convencidos eram minoria diante dos dispostos a ser convencidos. Partidos de gente partida.
Não
é o apocalipse. Mas há um parentesco natural entre Executivo e Legislativo
quando um mesmo apetite adquire peso e a balança do destino coloca a vida perto
da necessidade e do medo. Se o Congresso deu outra chance ao presidente, não
deve imitar sua deformidade.
A
relação com ele é incompatível com a emoção, como bem fez o Senado. Há emoções
que ajudam a corrigir e reorganizar o caráter; há outras que o exacerbam. Há
inversão de papéis se o Parlamento imagina manipular cordéis do Executivo.
Certo que há parlamentares colegas acostumados com a longa prática da
hipocrisia que é usufruir o mandato mais do que exercê-lo. Estranho é um número
tão grande achar isso natural.
O
governo pode ter posto o inimigo em casa. Já o Congresso pode ter armado uma
rede em que ele próprio cairá. Se continuar comovido e aceitar suflê, será
servido na mesma vasilha do forno sem imaginação do presidente. Em política a
distração é cômica.
Todo
esse vaudeville é
sinal da luta do politeísmo pagão praticado pelos partidos. Alguma coisa lembra
George Foreman e sua máquina de grelhar. A iniquidade que a chapa inflige à
carne é que permite o triunfo glorioso do churrasco. Mal passado, bem passado
ou cru, o assador Lira deve cuidar para produzir pouca fumaça num plenário em
que uns nada querem entender, outros nada querem ver e a maioria só vê o que
quer. O fácil se torna impossível. E quando se formam maiorias predatórias algo
de atentatório à vida democrática emerge.
A
tensão é de cabo de guerra. O governo não olha sequer os mortos. Mas a política
é um padre mole que une os casais que parentes desaprovam. A hora do divórcio é
que interessa em país onde os governos caem de dentro para fora.
Antes
do primeiro churrasco Lira homenageia Niemeyer descrevendo a grandeza sutil da
arquitetura do plenário. Minutos depois, assentado no trono, queima a carne
passada. Anula a votação da Mesa e ataca Maia, inexoravelmente abandonado, sem
condições de conter a velocidade da adesão. Fidelidade é guarda-chuva frágil;
na tormenta, melhor táxi.
Inacreditável:
as 35 propostas prioritárias são um gasto psíquico acreditar. Revelam como a
política se desequilibra em desfavor da racionalidade quando os ideais se
esgotam. Um amontoado que desvirtua conceitos, privilegia tontices para
contornar o custo de enfrentar privilégios. Uma lembra o esquadrão da morte ao
defender imunidade para policiais arbitrários. A miscelânea tem gás, água, luz,
pedágio, pedofilia, Fräulein, startups, arma, índio e o emergencial é de 2019.
Nada sobre os mandarins do Estado, vacina, pobreza, jovem, privilégio militar,
desemprego. A incompreensibilidade e o desprezo pela economia fazem o Brasil
refratário à evolução humana e a aspirações coletivas.
É
uma cegueira fingir não ver que o artificial da economia vai estourar. Manter a
estagnação econômica e apostar na pobreza dos não influentes para proteger os
influentes da depressão é intelectual e moralmente pouco exigente. A razão da
força paradoxal do presidente talvez seja o esforço que faz para manter o
estado de crise e evitar que a paz seja um dia longa. Seu jogo parlamentar não
se sustenta se metade do dia ele se dedicar à prosperidade de sua reeleição. E
na outra metade a impedir a prosperidade da Nação.
*Sociólogo
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