O Estado de S. Paulo
A dialética democrática desconhece a
dominação bruta de um grupo sobre os demais
O Brasil dos nossos dias não é propriamente
o ponto de observação mais adequado para avaliar processos políticos
latino-americanos, tão surpreendentes e imprevisíveis quanto os que nós mesmos
temos experimentado na carne. O redemoinho nos é comum e arrasta todos,
fazendo, em geral, os raciocínios ficarem turvados pelas paixões da hora.
No País oficial as avaliações obedecem a um
automatismo indigente. Diante do protagonismo de qualquer setor da esquerda
latino-americana, em si tão diversa e fragmentada, as vozes dos nossos
governantes se limitam a lamentar a “perda” de tal ou qual nação vizinha para a
causa das “liberdades”, como se os antolhos da guerra fria devessem nos
envesgar indefinidamente. Sintomáticos o uso e o abuso da palavra “comunismo”,
como se se tratasse de escolher “modos de produção” a cada rodada eleitoral, e
não, mais singela e concretamente, barrar os nacionalismos autoritários de
vertentes às vezes opostas que nos ameaçam.
Os representantes do País não oficial nem sempre estão atentos ao que se passa fora das nossas fronteiras, ainda que os eventos pipoquem ao redor. Proverbiais, a respeito de temas externos, o silêncio e a desatenção de forças moderadas ou de centro, pouco afeitas a tratar do “nexo nacional-internacional” como questão de primeira ordem. Partidos desse campo não costumam ter “política externa” e, uma vez no governo, em regra são pouco inovadores.
Forças e partidos de esquerda parecem ter,
no código genético, a vocação internacionalista, o hábito de discutir os ares e
as revoluções do mundo, embora, nesta parte do espectro, narrativas e
paradigmas também se renovem com lentidão. Comprovam-no a força que teve o mito
da revolução cubana ou, mais recentemente, a capacidade de atração despertada
pelas malfadadas experiências do “socialismo do século 21”, muito especialmente
o chavismo e o madurismo.
Despertam relativamente menos atenção as
análises que destacam o fato de que, mesmo em realidades tão desiguais, a
vontade de mudança social já não se traduz em movimentos de força ou ações de
violência revolucionária. Para esse tipo de análise, a questão democrática
passou de uma vez por todas ao centro do palco. O chileno Norbert Lechner,
ainda nos anos 80 do século passado, expressou numa fórmula sintética – de
la revolución a la democracia – este novo ponto de partida analítico e,
também, esta espécie de tomada de posição moral sobre a mudança: ou ela se vale
permanentemente dos procedimentos da democracia política ou está condenada a
gerar recorrentes realidades autoritárias. Que o diga, por exemplo, a Nicarágua
desse desastroso Ortega.
Agitações aparentemente sem fim, como na
Colômbia, saídas por meio de uma Constituinte, como no Chile, eleições com
vitorioso improvável, como no Peru, são indicações claras de que, ao rechaçar a
ideia revolucionária e escolher a outra, não se idealizam cenários sem
conflito. Em todas essas situações ficam expostos simultaneamente o drama
latino-americano e, numa refração particular, a crise contemporânea da
democracia.
Vive-se a crise, ou se tentam saídas
provisórias, em meio à ruína da política, à desconfiança nas suas formas, à sensação
disseminada entre os representados de que, no fundo, seria melhor tirar de
circulação seus representantes e exercer diretamente o poder. Há já duas
décadas se fazia ouvir na Argentina o estridente, mas improdutivo, que se
vayan todos, canto de sereia da antipolítica e da democracia “direta”, que os
aventureiros da extrema direita veem como o caminho real para suas estripulias
e os desatinados da extrema esquerda confundem com o apelo revolucionário.
Se os parâmetros estão dados pela boa
novidade da política democrática, as melhores esperanças – e a advertência mais
severa, que também vale para o Peru de Pedro Castillo – surgem com o processo
chileno. Ali a Convenção Constituinte tem natureza bastante diversa da
representada pelo truque chavista de concentração de poderes e estatização da
sociedade civil. Pode-se vislumbrar, com moderado otimismo, a remodelação do
sistema partidário segundo as diferenciações que ora fervilham na vida social.
Há temas “transversais”, relativos às questões ambientais ou de gênero, que
estão destinados a se projetar vigorosamente no conjunto da esfera política,
enriquecendo a concepção de democracia representativa. A velhice dos partidos e
das instituições estará garantida se não os absorverem e metabolizarem com
generosidade.
Contudo a advertência acima mencionada é igualmente poderosa. De toda essa movimentação não se pode excluir nenhuma força, nem mesmo quando, como no Chile, a direita tradicional não se sai bem nas urnas. A dialética democrática, ao requerer a legitimação recíproca de contendores leais às instituições e, consequentemente, a alternância no poder, desconhece a dominação bruta de um grupo sobre os demais. De tal dialética só se autoexcluem os violentos – e estes, desde que o mundo é mundo, são filhos problemáticos de todas as famílias políticas.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Um comentário:
Luiz Sérgio Henriques é leitura obrigatória.
De modo geral, sabemos que os políticos em geral defendem seus próprios interesses, não os nossos, mas nas entrelinhas deste artigo dá para ver que mesmo hoje existem soluções possíveis. Isso traz esperança. Pena que ela esbarre ora no fisiologismo, ora em visões tacanhas do mundo, ora no autoritarismo e, em última análise, na poderosa estupidez humana.
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