EDITORIAIS
Será preciso ter responsabilidade no 7 de
Setembro
O Globo
O presidente Jair Bolsonaro está certo quando diz que seus apoiadores têm o
direito de ir e vir, de organizar manifestações como as previstas para o Dia da
Independência nesta terça-feira e de defender as políticas adotadas por seu
governo. Do ponto de vista político, o presidente também tem o direito de
chamar bolsonaristas para a rua. É um momento em que ele precisa demonstrar
força diante de uma realidade inóspita.
A inflação segue alta e corrói a renda, o
desemprego continua afetando mais de 14 milhões de brasileiros, indícios de
maracutaias não param de sair da CPI da Covid, a crise hídrica e a falta de
planejamento fizeram o preço da conta de luz disparar, pondo em risco a recuperação
econômica em 2022. Empresários, sempre reticentes em criticar quem está no
governo por receio de represálias, têm saído a público com manifestos em favor
da democracia, uns mais, outros menos explícitos nas críticas ao presidente.
Precisa ficar claro, porém, tanto a Bolsonaro quando a seus seguidores, que seus direitos, como os de todos os brasileiros, têm limites. Podem ir e vir, mas não dirigir a 120 quilômetros por hora dentro das cidades. Desfrutam a liberdade de expressão, porém não podem atacar as instituições que sustentam o ordenamento democrático. Infelizmente, dado o retrospecto, faz-se ainda necessário explicitar também que não é permitida a participação de militares da ativa em manifestações políticas.
Motivos para preocupação com o que acontecerá
no 7 de Setembro não faltam. Como já foi dito sobre Donald Trump, Bolsonaro é
também uma “fábrica de confusão”. Afirma ser um democrata e respeitar os
resultados eleitorais, nega apoiar a ideia de um golpe e, ao mesmo tempo, dá
sinais claros de pensar o oposto. Quem afirma “jogar dentro das quatro linhas
da Constituição” não pode condicionar sua obediência a nada. Não tem “mas”.
Continuando no terreno das metáforas
futebolísticas, o presidente parece agir como um técnico de futebol que jura
respeitar as regras do jogo, mas treina seu time com lições de luta livre, não
para obedecer às decisões do juiz. Que fique claro: todas as precauções devem
ser tomadas para que as manifestações ocorram em clima de paz. Caso contrário,
a responsabilidade recairá sobre o próprio presidente.
Na sexta-feira, Bolsonaro disse que o 7 de
Setembro será um ultimato para “um ou dois”, o que foi entendido como
referência a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Dias antes, havia
discursado que seus apoiadores mostrarão “quem manda no Brasil”. “Nós temos a
obrigação de fazer aquilo que vocês determinam.”
O presidente precisa entender duas coisas:
1) ministros do STF não podem receber, sob nenhuma hipótese, ultimato do
inquilino do Alvorada; 2) por maiores que sejam as manifestações, o nível de
apoio ao governo não chega a um quarto dos eleitores. Várias pesquisas de
opinião atestam que os bolsonaristas são minoria. Ter a capacidade de lotar um
estádio não significa ter a maior torcida. A democracia, é bom não esquecer, precisa
proteger os direitos de todas as minorias, mas ainda é o governo da maioria.
Projeto de dispensa de alvará beneficia
pequenos negócios
O Globo
A prefeitura do Rio enviou à Câmara de
Vereadores o projeto de lei de Liberdade Econômica do Município propondo, entre
outras coisas, a eliminação da necessidade de alvará para atividades de baixo
impacto, ressalvada a obrigação de inscrição na Secretaria Municipal de Fazenda
e Planejamento. Paralelamente, implantou o Licenciamento Integrado, que reduz
de 267 para 30 dias o tempo para emitir uma licença de obra.
Dispensar o alvará beneficia em especial
pequenos negócios, tocados por quem tem espírito empreendedor ou foi forçado ao
trabalho por conta própria depois de perder o emprego na pandemia. Como mostrou
reportagem do GLOBO, muitos moram em favelas. Estão entre os 16 milhões que, em
todo o país, movimentavam quase R$ 10 bilhões por mês antes da Covid-19,
segundo levantamento do Instituto Locomotiva, que estima uma queda de 23% nesse
valor. Quase metade (48%) diz ter alguma renda com negócio próprio. E a massa
de renda é maior que o consumo de países como Paraguai, Bolívia ou Uruguai.
É o caso dos fornecedores de quentinhas
para vizinhos que precisam emitir nota fiscal caso surja a oportunidade de
prestar serviço a empresas. Ou de pedreiros obrigados a se formalizar para ter
acesso a crédito.
O consenso de que a burocracia atrapalha o
crescimento do Brasil é tão antigo — e reiterado por pesquisas periódicas —,
que o país já viveu o paradoxo de criar, em 1979, um ministério para reduzir os
entraves aos cidadãos e agentes econômicos em sua relação com o Estado. O
Ministério da Desburocratização teve vida curta e foi extinto em 1986.
O Doing Business 2021, estudo do Banco
Mundial com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae), da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Confederação
Nacional do Comércio, mostrou em junho deste ano que as empresas brasileiras
gastavam, em média, 1.493 horas por ano para pagar impostos, um recorde
mundial. A pesquisa confirmou que o Brasil tem desempenho pior que outros
países em aspectos fundamentais para quem empreende: abertura de empresas,
obtenção de alvará de construção, registro de propriedades e execução de
contratos.
Espera-se que a Câmara do Rio aprove a
dispensa do alvará. Quem perdeu o emprego na pandemia e trabalha por conta
própria tem pressa e não pode ficar eternamente excluído dos benefícios da
formalização. Precisa que o poder público seja um facilitador para gerar renda
própria ou dos terceiros que venha a contratar. Da mesma forma que grandes
empresários, com a diferença que estes têm mais condições de reagir à cobrança
de impostos elevados e às exigências absurdas do Estado.
Se a brutal desigualdade brasileira ficou
escancarada pela pandemia, a burocracia só tende a torná-la ainda mais
perversa.
Um Executivo que ignora o Legislativo
O Estado de S. Paulo
Em vez de realizar o trabalho de coordenação política junto ao Congresso, tão próprio do regime presidencialista, Jair Bolsonaro opta por atalho falso
O bolsonarismo difunde o discurso de que os
outros Poderes não deixam o presidente Jair Bolsonaro trabalhar. A realidade é
exatamente a oposta, como mostra a recente publicação da Medida Provisória (MP)
1.065/21, que instituiu um novo marco legal do transporte ferroviário. A um só
tempo, o ato revela exercício abusivo do poder presidencial e descaso com o
trabalho do Congresso, que vem estudando o assunto das ferrovias desde 2018.
Previsto na Constituição, o poder de editar
medida provisória tem contornos precisos. “Em caso de relevância e urgência, o
presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei,
devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, diz o art. 62.
Medida provisória entra em vigor
imediatamente e, caso não seja convertida em lei pelo Congresso no prazo máximo
de 120 dias, perde sua eficácia. Não é, portanto, ato propício para estabelecer
novo marco jurídico para determinado setor econômico. Isso exige estudo, debate
e ponderação.
O poder previsto no art. 62 da Constituição
não é uma autorização para o Executivo substituir o Legislativo, tampouco para
forçá-lo a decidir sobre determinado assunto. Medida provisória é instrumento
para enfrentar situações específicas, que sejam relevantes e urgentes.
A pretensão de criar marcos jurídicos por
simples ato do Executivo é incompatível com a segurança jurídica. Além disso, é
uma ilusão pensar que uma canetada do presidente da República, alterando de
supetão a regulação de um setor da economia, seja capaz de promover a confiança
e o dinamismo dos negócios.
Como se não bastasse o abuso de poder na
edição da MP 1.065/21, o Palácio do Planalto ignorou o trabalho do Congresso a
respeito do tema. Desde 2018, o Senado estuda um novo marco jurídico para o
setor ferroviário, por meio do Projeto de Lei (PL) 261/2018.
De autoria do senador José Serra (PSDB-SP),
o PL 261/2018 dispõe, entre outros tópicos, sobre a exploração indireta pela
União do transporte ferroviário em infraestruturas de propriedade privada,
autoriza a autorregulação ferroviária e disciplina o trânsito e o transporte
ferroviário. A proposta do projeto é a adoção do sistema de licença para a
exploração das ferrovias, e não mais o de concessão.
Como se vê, são assuntos complexos, que
exigem especial cuidado. Depois de três anos de estudo e debate, o PL 261/2018
foi considerado, no mês passado, pronto para ser votado pelo plenário do
Senado. Eis que, então, o Palácio do Planalto edita medida provisória sobre o
tema.
Perante tal atitude, senadores da Comissão
de Assuntos Econômicos do Senado pediram ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco
(DEM-MG), que devolva a MP 1.065/21 ao Executivo federal. A devolução é um meio
de o Legislativo retirar, de imediato, a eficácia de medida provisória que, de
forma patente, não preenche os requisitos constitucionais.
Em junho de 2020, o então presidente do
Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu, por evidente inconstitucionalidade,
a MP 979/2020, que autorizava a nomeação de reitores de universidades públicas
e institutos federais sem consulta prévia ou lista tríplice.
A quem possa pensar que esse modo de atuar
do presidente Jair Bolsonaro revelaria, ao menos, a boa disposição de enfrentar
determinado assunto, vale lembrar que, a rigor, a edição abusiva de medida
provisória expõe uma grave omissão por parte do Executivo. Em vez de realizar o
trabalho de coordenação política no Congresso – tão próprio de um regime
presidencialista –, Jair Bolsonaro opta por um atalho fácil e falso. Num Estado
Democrático de Direito, assuntos complexos, tanto do ponto de vista técnico
quanto do político, não são resolvidos por mera canetada.
Nessa omissão, vislumbra-se mais do que
simples desídia em relação aos deveres presidenciais. Nota-se um modo
autoritário de exercer o poder, como se a Constituição autorizasse o presidente
da República a ignorar o Congresso. Ainda que Jair Bolsonaro não queira, o
regime democrático exige a política.
A armadilha das commodities
O Estado de S. Paulo
Relatório da Unctad enfatiza ‘vontade política’ como primeira condição para superá-la
A dependência das commodities está
associada a problemas como crescimento lento, estrutura econômica não
diversificada, baixo desenvolvimento humano, volatilidade de renda,
instabilidade macroeconômica e política, fluxos financeiros ilícitos,
governança política e econômica pobre, baixo desenvolvimento social e alta
exposição a choques como as mudanças climáticas ou pandemias.
Convencionalmente, diz-se que um país
depende de commodities – bens primários, como metais, minerais ou produtos agrícolas
– quando deriva delas ao menos 60% das suas receitas de exportação. Dois terços
dos países em desenvolvimento (64%) são dependentes de commodities. Entre os
países desenvolvidos, são apenas 13%.
Projeções econométricas mostram que, para
países em desenvolvimento dependentes de commodities, é extremamente difícil
sair deste estado. Não surpreende que um relatório recente da Conferência sobre
Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas (Unctad) sobre a cadeia de
commodities tenha sido intitulado Escapando
da Armadilha da Dependência das Commodities através da Tecnologia e Inovação.
Segundo a Unctad, para desarmar essa
armadilha os países em desenvolvimento precisam instaurar infraestruturas
físicas e institucionais capazes de fomentar um ecossistema tecnológico que
leve à produção de bens mais diversificados e sofisticados.
Fortalecer facilitadores da produtividade,
como educação, infraestrutura e tecnologia, é precondição. “A existência de
infraestrutura ‘dura’, como eletricidade confiável e conexão de internet, e de
infraestrutura ‘suave’, como regras e regulamentos governando a inovação e a
adoção de tecnologia, criação e fortalecimento de instituições de pesquisa e desenvolvimento,
e estabilidade macroeconômica são necessárias para uma bem-sucedida
transformação econômica baseada na tecnologia.”
Além destes facilitadores, ditos
“horizontais”, a Unctad aponta os “verticais”. No caso de países dependentes de
commodities “duras” (minerais e energéticas), os principais facilitadores são a
capacidade fiscal e os investimentos nacionais e estrangeiros, enquanto para os
dependentes de commodities “suaves” (agropecuárias) seria o acesso ao capital
produtivo e às informações sobre inovações e tecnologia.
Omã, por exemplo, expandiu sua produção de
combustíveis refinados, como gasolina e querosene, e diversificou
petroquímicos, como álcool, fertilizantes e plásticos. Em quatro décadas, as
políticas de diversificação e apoio à tecnologia e capital humano da Costa Rica
fizeram com que suas principais exportações passassem da banana e café para
microcircuitos e componentes de máquinas. A política industrial que resultou
nos “milagres asiáticos” (Taiwan, Cingapura, Coreia, etc.) foi baseada em três
pilares: atuação pública para criar novas capacidades em indústrias
sofisticadas; promoção das exportações; e subsídios acompanhados de regras
rigorosas de accountability e condicionados a uma forte competição nos mercados
doméstico e internacional.
No caso do Brasil, todos esses exemplos são
sugestivos. A participação das commodities (“duras” e “suaves”) na estrutura
produtiva nacional tem crescido, enquanto a da indústria tem decrescido. Mas o
País tem boas condições para revitalizar a sua indústria, como uma grande
capacidade instalada e um amplo mercado interno, que o capacitam a atrair
investimentos estrangeiros diretos e transferências de tecnologia. Comparado à
maioria dos países em desenvolvimento, o Brasil tem uma economia mais diversificada
e um nível elevado de desenvolvimento tecnológico.
A dependência das commodities é uma
armadilha, não um destino. A Unctad enfatiza que a primeira e mais importante
condição para superá-la “é uma forte vontade política e uma visão de
desenvolvimento de longo prazo, junto a uma estratégia de implementação
ambiciosa, mas razoável”. Na atual conjuntura, há um vácuo nesse sentido. É
fundamental que em 2022 o eleitorado se prepare para cobrar dos candidatos
políticas de estímulo às capacidades industriais, à inovação e à difusão de
tecnologias.
Calçadas inseguras
O Estado de S. Paulo
A oferta de calçadas em São Paulo é inversamente proporcional à demanda
Uma das diretrizes do Plano Diretor
Estratégico de São Paulo é a prioridade ao transporte coletivo e modos não
motorizados, em especial o mais antigo e popular do mundo: a caminhada. A razão
é intuitiva: deslocamentos a pé são mais saudáveis, econômicos, ecológicos,
agradáveis e estimulam a convivência entre os cidadãos e sua interação com os
bairros, sua arquitetura e seus serviços.
Mas, segundo um levantamento
do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP, em São Paulo a oferta das
calçadas é inversamente proporcional à demanda: em geral, onde mais se anda a
pé, é onde a largura das calçadas é menor.
Pela legislação municipal, calçadas seguras
devem contar com uma largura mínima de 2 metros. No centro expandido, onde estão
concentrados os empregos e o volume de deslocamentos a pé é alto, as calçadas
efetivamente apresentam largura adequada, em média maior que 3 metros.
Fora isso, as zonas onde a maioria dos
deslocamentos é feita a pé – em geral subprefeituras mais periféricas ao norte,
leste e sul – são justamente as que apresentam maior porcentual de calçadas
estreitas.
Previsivelmente, o padrão dos passeios em
São Paulo reproduz desigualdades sociais: quanto maior é a concentração de
habitantes de classe alta e brancos, mais largas as calçadas; quanto mais
estreitas as calçadas, maior a concentração de pobres e negros. Mas justamente
estes últimos são os que caminham mais.
A qualidade das calçadas não é mera questão
de comodidade. Más condições podem ser letais: entre as vítimas do trânsito em
São Paulo, os pedestres são as principais.
Segundo
o levantamento Calçadas do Brasil do projeto Mobilize, São Paulo
ocupa o primeiro lugar entre as capitais em termos de qualidade de calçadas.
Ainda assim, está abaixo do mínimo aceitável em critérios como acessibilidade,
conforto, segurança e, sobretudo, sinalização. Na maioria dos locais faltam
bancos, espaços de descanso, abrigos contra chuva ou sol, além de rampas de
acessibilidade, essenciais para cadeirantes ou carrinhos de bebês.
O CEM aponta três frentes de atuação para o
poder público. A primeira se refere à responsabilidade pela gestão das
calçadas. Pela legislação, a manutenção das calçadas é compartilhada entre a
Prefeitura (responsável pelas calçadas do sistema viário estrutural e calçadas
prioritárias, como as que margeiam escolas, hospitais, repartições, terminais
de transporte e outros equipamentos) e os proprietários dos imóveis lindeiros
(que respondem por mais de 80% das calçadas).
O Plano de Mobilidade de São Paulo, de
2015, identifica nessa divisão uma das causas da precariedade das calçadas, e
recomenda que a gestão do espaço público viário seja responsabilidade única da
Prefeitura. Isso exigirá uma legislação especial.
Enquanto ela não vem, o poder público pode
assumir para si a gestão de calçadas estratégicas, como fez com as Avenidas
Paulista e Faria Lima. Pode também promover campanhas de conscientização dos
donos de imóveis, melhorar a fiscalização e aplicar termos de ajuste de
conduta.
A segunda frente de atuação é a redução das
desigualdades. As áreas periféricas precisam de mais atenção. Recursos existem.
O Fundo de Desenvolvimento Urbano apresenta reservas da ordem de R$ 1 bilhão,
das quais 30% podem ser destinados aos sistemas de transportes coletivos,
cicloviário e de circulação de pedestres.
Mas, para que o trabalho de qualificação
seja bem planejado e eficiente, é preciso que haja dados. Essa é a terceira área
de atuação. O sistema de contagem de pedestres da Companhia de Engenharia de
Tráfego, por exemplo, não abrange áreas periféricas.
Em 2021, está programada a revisão do Plano
Diretor. A circulação de pedestres e seu meio, as calçadas, deveriam ser prioridades.
Uma pesquisa do Metrô mostrou que 40% das viagens de carro percorrem menos de
2,5 km, ou seja, poderiam ser feitas a pé. Quanto maior for a apropriação das
ruas e espaços públicos pelos cidadãos, maior será o estímulo à cidadania. E,
por definição, quanto maior for o estímulo à cidadania, mais civilizada será a
vida na cidade. --
A farda e a toga
Folha de S. Paulo
Brasil ganharia com regras para inibir a
partidarização de carreiras de Estado
O Estado democrático moderno organizou-se
em dois eixos. Das tarefas legislativas e da chefia das executivas ocupam-se
agentes políticos periodicamente eleitos. Das burocráticas, judiciais e de
segurança incumbem-se servidores admitidos por critérios técnicos e legais.
O horizonte dos primeiros, o do mandato, é
curto. O dos segundos se prolonga na carreira. Espera-se dos políticos que
tomem partido, compitam por ideias e doutrinas particulares. Já aos servidores
estatais cabe atuar com neutralidade, universalidade e objetividade.
O sistema piora se esses dois campos se
misturam. Ou degenera em tecnocracia, quando burocratas pretendem substituir a
dinâmica política, ou em sectarismo e ineficiência, quando a partidarização
penetra e corrói o serviço público.
Ameaça o Brasil este segundo risco, o do
sequestro, pela lógica político-partidária, de corporações incumbidas de
tarefas essenciais para os cidadãos. Policiais, juízes e membros do Ministério
Público, ao perseguir objetivos eleitorais, sentem-se à vontade para rebaixar e
instrumentalizar as carreiras.
Em momento oportuno, portanto, surge a
proposta legislativa de impor um custo aos servidores de carreiras típicas de
Estado que desejem concorrer a cargos eletivos.
O dispositivo, em discussão na Câmara dos
Deputados, estabelece que são elegíveis apenas magistrados e integrantes do
Ministério Público que tenham se afastado de seus cargos cinco anos antes do
pleito.
A mesma regra se aplica a policiais civis
estaduais e guardas municipais e, na União, a membros das polícias Federal,
Rodoviária e Ferroviária.
No caso dos militares, da União e das PMs,
o mecanismo em debate é um pouco diferente. Para poderem concorrer em eleição,
precisam de um quinquênio de afastamento em relação ao início do processo de
escolha de candidaturas e coligações, que ocorre em geral em meados do ano
eleitoral. Quem for eleito passa à reserva da respectiva corporação.
No intuito de evitar mudanças abruptas nas
regras vigentes —o que é cautela saudável num país acostumado a convulsões
legislativas às vésperas de pleitos—, o texto da Câmara fixa em 2026 o início
dos novos requisitos de elegibilidade.
Além desse projeto, o estímulo à separação
entre as atividades políticas, de um lado, e as de segurança e da Justiça, do
outro, seria reforçado com a proibição da nomeação de militares da ativa para
cargos de natureza civil e com o estabelecimento de longa quarentena para que o
procurador-geral da República e ministros de Estado sejam indicados para o Supremo
Tribunal Federal.
Na República democrática, a toga e a farda
funcionam como uma segunda pele. Não deveriam ser trocadas pelo paletó e a
gravata dos políticos como se muda de camisa.
Apagão estatístico
Folha de S. Paulo
Aumento de mortes sem motivo determinado
coincide com início da gestão Bolsonaro
A divulgação do Atlas da Violência 2021
trouxe novas preocupações acerca do quadro da segurança pública nacional. Afora
os números elevados de assassinatos e a desigualdade racial e de gênero que
marca a contabilização das vítimas, o levantamento do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública apontou
um apagão nas estatísticas.
São desconhecidos os motivos de quase 17
mil mortes violentas em 2019 —que podem ter sido decorrência de agressão,
homicídio, acidente ou suicídio, mas estão computadas como indeterminadas. Os
casos saltaram de 12.310, no ano anterior, para 16.648, alta de 35%.
Os responsáveis pelo Atlas, o que inclui,
além do FBS, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Instituto
Jones dos Santos Neves, ligado ao governo do Espírito Santo, afirmam que a
piora na qualidade das informações ocorre após um período de 15 anos de aperfeiçoamento.
Uma causa apontada é a falta de revisão
adequada dos dados por estados e, principalmente, pelo governo federal. O lapso
coincide com o início da gestão de Jair Bolsonaro, que, como se sabe, tem
atuado de maneira perversa na tentativa de estimular a brutalidade policial,
afrouxar controles e ampliar a circulação de armas de fogo.
A falha nas notificações provavelmente
mascara o número de homicídios, que caiu em 2019.
O relatório expõe também que a queda na
violência letal nos últimos dez anos foi desigual, em desfavor da população
negra. Para esta, a taxa por 100 mil habitantes reduziu-se em 15% entre 2009 e
2019; para os demais estratos, foram 30%. Negros são 76% das vítimas.
A taxa de mortalidade de mulheres pretas ou
pardas, que em 2009 era 49% maior que a de mulheres brancas, indígenas ou
amarelas, agora passou a ser 66% superior.
O perfil das vítimas continua
predominantemente jovem, apesar de essa porcentagem estar caindo ano a ano.
Entre os mais de 600 mil homicídios acumulados de 2009 até 2019, 53% dos mortos
tinham entre 15 e 29 anos.
O Atlas também expõe a precariedade de
informações sobre a violência contra a população LGBTQIA+. Denúncias ao Disque
100, do governo federal, que desde 2015 somavam entre 1.600 e 2.000 ligações
anuais, caíram à metade em 2019.
Parece claro que a influência do atual
governo, hostil às estatísticas, se faz sentir mais uma vez em área relevante,
caso da identificação da violência na sociedade brasileira.
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