O Globo
Ela sempre foi mais que um regime de
qualquer natureza, sendo uma forma de viver
Me encantei com a oradora indígena que
representou o Brasil extraoficialmente na reunião de Glasgow sobre o meio
ambiente. Os jornais informaram que ela é bissexual, fã de funk e estudante de
advocacia. Mas o que mais me interessou em Alice Pataxó foi o que ela disse
diante dos espertos participantes da COP26: as pessoas de poder no Brasil,
inclusive o presidente da República, não se interessam pela luta contra o
coronavírus, não podemos contar com nossas autoridades, elas estão em outra.
Num inglês de aluna recente do IBEU, Alice fez questão de afirmar, com a força
de sua juventude, que veio a Glasgow para desmentir as mentiras de Bolsonaro.
Ela tem razão. Segundo as despesas do
governo, Bolsonaro autorizou que se gastasse mais com o lançamento recente da nota
de 200 reais do que com a luta contra o coronavírus. Incluindo aí, claro, o
custo das vacinas que já produziram visíveis resultados. Como diz em coro a
“grande imprensa”, o dinheiro público deve servir sempre ao bem estar da
população, né não?
Enquanto isso, nossa oposição explícita condena, por um lado, os gestos autoritários dos bolsonaristas; por outro, saúda com entusiasmo a “eleição” de Daniel Ortega, na Nicarágua, como “grande manifestação popular e democrática”. O ex-herói da luta histórica contra a ditadura de Somoza, no final da década de 1970, não vacilou em mandar prender, para se manter por mais um mandato no poder, os sete candidatos de oposição durante a campanha eleitoral. Nela, Ortega tinha sob controle o Legislativo, o Judiciário, as Forças Armadas e a justiça eleitoral, além de reprimir ou mandar matar os que se manifestavam contra ele.
Isso parece um eco dos anos 1960, quando a
democracia não era fator para se considerar justo um regime social. Mas se
todos os regimes podiam ser contestados por não produzirem os bens prometidos,
a democracia não. A democracia sempre foi mais que um regime de qualquer
natureza, sendo uma forma de viver. Ela só pode ser respeitada se respeitar
alguns valores, como a liberdade de expressão em qualquer circunstância, a
igualdade de oportunidades em todas as áreas e o direito de cada um de lutar
por sua felicidade. Para ser politicamente confiável, nenhum regime pode evitar
esse julgamento.
Mas não podemos negar todas as iniciativas
do outro lado, só porque foram tomadas pelo outro lado. Já pensaram no tédio
que seria viver num mundo em que estamos sempre certos, que só no lado oposto
encontramos erros e equívocos? Dar dinheiro aos que não têm dinheiro, nem para
comer, não está errado. Mesmo que isso custe um furo no teto fiscal, o
bem-estar da população é mais importante que uma conta em banco. Mas Bolsonaro
não está tirando da reserva de Guedes para dar aos pobres. Ele está apenas
comprando votos para sua reeleição, golpe baixo às custas do equilíbrio fiscal
do país. Antes dele, outros governos fizeram operações parecidas com gente rica
e poderosa, oferecendo formidáveis contratos e vantagens, em troca de votos ou
não, como no mensalão ou no petrolão. No caso, o Bolsa Família era o Brasil que
deu certo e já tinha 18 anos de existência, desde o primeiro mandato de Lula.
Se formos contra trocar o equilíbrio fiscal
por matar a fome dos pobres, estaremos sendo contra um jeito de fazer justiça
social no país, mesmo que em detrimento das contas públicas, do furo no teto. É
melhor que usurpar recursos da educação, da saúde e da ciência, como Bolsonaro
já faz por hábito, sem respeito pelos que precisam ou pelos que sabem organizar
esses elementos. Ele vai ressuscitar sua popularidade com a carne podre do
Auxilio Brasil, o dinheirinho que ele vai dar a partir desse mês e que não
valerá mais nada dentro de alguns poucos meses.
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