domingo, 14 de novembro de 2021

Dorrit Harazim - Lixo humano

O Globo

Alexander Lukashenko costuma ser astuto em sua desumanidade. Currículo para isso ele tem, como primeiro e único “presidente” da Bielorrússia desde que esse antigo Estado-satélite da União Soviética tornou-se república, em 1990. Na última das eleições fraudulentas realizadas no país — a de 2020, para um sexto mandato de Lukashenko —, ele proclamou ter obtido 80% dos votos. E foi logo avisando ao mundo democrático: “A menos que vocês me matem, não haverá mais eleições”. O cara vive às turras com a União Europeia (UE), que lhe aplica sanções múltiplas por seus modos ditatoriais, e alinha-se com fervor à Rússia de Vladimir Putin, o vizinho imperial da fronteira leste.

Em tempos recentes, Lukashenko encontrou a maneira mais infame de ostentar seu poder e azucrinar a Europa democrática. Passou a importar como gado humano milhares de errantes de nações desintegradas do Oriente Médio e da África do Norte, para socá-los na soleira da porta trancada da sonhada União Europeia — mais precisamente, nas fronteiras com a Polônia, a Lituânia e a Letônia, todos países-membros da UE.

Seu esquema é tão azeitado quanto vil. Primeiro, agentes de viagens bielorrussos instalados no Iraque, Turquia e outros países oferecem voos, vistos de entrada e um possível recomeço de vida no Ocidente. Ao custo de alguns milhares de dólares por cabeça, aviões de carga da estatal Belavia transportam a carga humana até Minsk, capital da Bielorrússia. Mas dali são transferidos para uma viagem terrestre sem volta. Quando descarregados, têm à frente uma intransponível muralha de arame farpado como fronteira e, às costas, a guarda armada da Bielorrússia a impedi-los de sair dali. Pelas contas da revista The Economist, perto de 2 mil migrantes já foram estocados nesse limbo em pleno início de inverno, e outros 20 mil estariam aguardando seu destino em outros cantos do país-cilada.

A lógica de Lukashenko consiste em gerar uma crise política europeia semelhante à de seis anos atrás, quando uma avalanche migratória de proporções bíblicas, vinda do mar, quase derrubou vários governantes. Na tentativa de forçar a UE a levantar as sanções impostas contra seu regime, o homem forte de Minsk também ameaça interromper o trânsito de gás natural russo que atravessa a Bielorrússia antes de aquecer e manter a Europa em funcionamento. Por ora, esse plano B de Lukashenko tem poucas chances de ser levado adiante, pois não atende aos interesses atuais de Putin. Essa é uma arma cujo direito a eventual uso somente o Kremlin quer ter. Mas resta a massa de manobra de quem hoje foge da miséria e da violência. Expulsos de suas raízes, arriscam-se por caminhos incertos, sem rumo claro, a esperança minguando.

Nem sempre foi assim. Basta ver o notável acervo de fotografias reunido pelo chefe do Departamento de Registros de Ellis Island, Augustus Frederick Sherman, entre 1905 e 1914, nos Estados Unidos. Por aquela ilha vizinha à Estátua da Liberdade, fincada na Baía de Nova York, passaram mais de 12 milhões de imigrantes entre sua inauguração como porta de entrada nos EUA e novembro de 1954, ano em que se tornou obsoleta. Mais especificamente, imigrantes de terceira classe, pois passageiros marítimos da primeira e segunda classes podiam desembarcar diretamente nos cais de Nova York e Nova Jersey.

É extraordinário o garbo com que esses desprovidos da terceira classe procuravam se apresentar no desembarque, para a inspeção médica contra doenças contagiosas e regulamentação de documentos. Fosse o recém-chegado ao Novo Mundo um pastor de ovelhas da Romênia ou um mineiro da Baviera, um padre ortodoxo da Grécia ou um soldado albanês, uma família de ciganos da Sérvia ou uma mãe com duas filhas vindas da Holanda, quanto zelo em se mostrar com a melhor roupagem! Graças ao interesse pessoal do funcionário Sherman por fotografia, existe um registro impactante e comovente dessa gente. Vale a pena consultar esses retratos de fácil acesso na internet para admirar o zelo orgulhoso de indivíduos e famílias ao pisar em Ellis Island. Portavam o que tinham de mais bonito, mostrando suas raízes. Tinham motivo para desembarcar esperançosos, pois, apesar das agruras e sacrifícios que só desterrados conhecem, haviam chegado ao destino escolhido.

O que dizer do amontoado de vidas na fronteira bielorrussa? Não há garbo possível nem orgulho identitário nos agasalhos de plástico, jeans e tênis surrados, nem em bonés, toucas de lã ou xales misturados. No fundo, seja em terras europeias ou rumo aos Estados Unidos via México, o desterrado de hoje veste uniforme globalizado: quase tudo made in China ou em Bangladesh. Das 60 toneladas de roupas descarregadas anualmente no porto chileno de Iquique, para revenda na América Latina, mais da metade encalha e forma pirâmides de lixo no Deserto de Atacama, como noticiado nesta semana. Esse lixo de roupas usadas e descartadas nos Estados Unidos, Europa e Ásia por consumidores globalizados forma um triste retrato do capitalismo perverso. Na outra ponta, temos os descartados de suas terras a perambular pelo mundo. É torcer para que não venham, também, a ser considerados lixo.

 

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