Folha de S. Paulo
Eleições serão afetadas pelo embate entre
política velha e o Estado de Direito
Conflitos que ocorriam nas sombras em
Brasília vieram a público nas últimas semanas. Não se trata de coisa pequena.
As eleições de
2022 serão afetadas pelo desfecho do embate entre o patrimonialismo
da política velha, que se apropria dos recursos públicos para atender seus
interesses paroquiais, e o Estado de Direito, que deve garantir as regras do
jogo democrático, incluindo a concorrência na política.
O patrimonialismo acena aos mais pobres com
uma mão, enquanto garante seu butim com a outra. A PEC dos
Precatórios tem como justificativa a obtenção de recursos para
o Auxílio
Brasil, cerca de R$ 47 bilhões que não caberiam no Orçamento em
razão do teto de gastos.
Não é bem assim. O Auxílio Brasil serviu de
cavalo de Troia para muitos interesses. A PEC permite um gasto adicional entre
R$ 106 bilhões e R$ 115 bilhões, a depender da inflação no fim do ano, mais de
duas vezes o necessário para viabilizar o programa social.
Parte da folga tem como destino o aumento
do fundo eleitoral, emendas de
congressistas e diversos benefícios para grupos de pressão, como caminhoneiros
e setores beneficiados com a desoneração da folha.
O acesso privilegiado de alguns
congressistas a recursos públicos para fazer obras em suas paróquias, sobretudo
em ano eleitoral, resgata as práticas do Brasil velho.
O poder discricionário de distribuir verbas
compromete a concorrência política, favorece os aliados dos novos coronéis e
restringe a divergência, tema da coluna do dia
9 de outubro.
Governos enfrentam dilemas e deveriam fazer escolhas antecipando suas consequências. Seria possível uma ampliação significativa do Bolsa Família sem furar o teto, desde que fossem eliminados programas pouco eficientes ou não destinados aos mais pobres.
O Palácio do Planalto, contudo, prefere
bálsamos milagrosos, apesar dos seus danosos efeitos colaterais.
No caso do Auxílio Brasil, ampliou-se o
teto de gastos sem fazer ajuste nas demais despesas públicas, colaborando para
o aumento das taxas de juros e da inflação, o que prejudica a atividade
econômica e a renda das famílias.
Nada de novo. O governo se declara
inconformado com o aumento do diesel e do gás. Parte importante da culpa,
porém, é da desordenada política econômica que contribuiu para a desvalorização
da taxa de câmbio.
Houve uma alta de preço dos produtos
exportados pelo Brasil desde meados do ano passado. Mais dólares entrando em
razão do que vendemos no exterior deveriam significar uma taxa de câmbio mais
baixa. Foi assim no passado, mas não desta vez.
A expressiva desvalorização foi agravada
pela saída de recursos do país em razão da falta de rumo na condução da
economia, das propostas inconsistentes de reformas e da insegurança sobre as
regras do jogo. Muitos investidores andam a desistir do Brasil.
A PEC dos Precatórios traz malefícios a
longo prazo em troca de ganhos fugazes. A medida alonga compulsoriamente o
pagamento de dívidas judiciais transitadas em julgado. Não se trata de
novidade. Fizemos algo ainda mais grave no passado distante, como no Plano
Collor.
As normas federais avançaram
institucionalmente desde então, afastando essa prática de intervenção
autoritária tanto por ferir princípios do Estado de Direito, quanto pelos seus
efeitos deletérios na economia. Pelo visto, foi de pouca valia.
Vamos retornar às arbitrariedades típicas
dos anos 1980 que tanto custaram ao país?
Há outro problema. Os gastos com
precatórios vêm aumentando há muito tempo. A nova regra, contudo, determina
que, daqui para a frente, a cada ano deve ser parcelado o que exceder os
valores pagos com precatórios em 2016, atualizados por índices de preços.
Técnicos da Câmara estimaram o impacto da PEC proposta
pelo Executivo caso as sentenças judiciais cresçam 5% ou 10% ao ano até 2036,
bem menos do que os 17% de crescimento anual dos últimos tempos.
Em 15 anos, a dívida do governo federal com
os precatórios não pagos oscilaria entre R$ 860 bilhões e R$ 1,45 trilhão,
criando uma bola de neve.
A PEC também altera o indexador do teto de
gastos, que passou a ser a inflação de 12 meses encerrada em dezembro, e não
mais em junho. A medida se vale de uma inflação em alta para ter despesas
maiores em 2022.
Essa proposta não existia quando o governo
esperava que a inflação fosse cair no segundo semestre. Pelo contrário, contava
com essa queda para ampliar os gastos no ano que vem. Como deu errado,
resolveram inovar, alterando, inclusive, o valor retroativo do teto.
Nem tudo, porém, são más notícias. O
Supremo Tribunal Federal vem reiterando as regras constitucionais nestes tempos
difíceis. A dura reação aos atos de 7 de Setembro conteve o descalabro. A
aprovação da liminar que suspendeu as emendas do relator foi mais um passo
importante.
Poucos momentos foram tão decisivos no
passado recente quanto o embate atual. Vamos sucumbir ao oportunismo que rompe
contratos e reformula as regras do jogo a seu bel-prazer para atender seus
interesses e reprimir a concorrência na política?
Ou vamos resgatar o fortalecimento das
instituições republicanas e as regras que restringem as ações do velho
patrimonialismo? Se for esse o caminho, não deveria ocorrer a moratória imposta
aos precatórios nem a permissão de acesso favorecido aos recursos públicos
pelos aliados de ocasião.
O desenrolar desse embate poderá ter consequências duradouras, a começar pela eleição de 2022.
*Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
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