O Globo
O fascínio provocado por Gabriel Boric, o
presidente eleito do Chile, evoca o impacto do frescor de Barack Obama na
primeira campanha à Presidência, em 2008. Ambos passaram de movimentos sociais
ao Legislativo, mas sem ter adquirido, no momento em que concorreram, ares de
raposa política. Obama emergiu no pós-Guerra Fria; Boric, na democracia,
questionando as certezas da velha esquerda. Sua conta no Twitter é encimada por
uma citação de Albert Camus: “A dúvida deve seguir a convicção como uma
sombra”.
O americano disputou as primárias
democratas com uma mobilização em que recebeu milhares de pequenas doações.
Boric venceu as primárias do seu campo, derrotando o pré-candidato comunista,
depois do movimento maciço que pôs em xeque o modelo socioeconômico chileno.
Apoiou os protestos, mas teve embates com ativistas que recusavam o diálogo com
os políticos.
A despeito do slogan de campanha — “Sim,
nós podemos” —, Obama pôde pouco. No discurso de posse, convocou à unidade, sem
levar em conta que a oposição republicana já estava tomada por uma vertente
reacionária que negava qualquer conciliação e viria a assombrar o governo do
primeiro presidente negro dos Estados Unidos.
Tendo assumido depois da crise financeira gerada por mercados desregulados, Obama trouxe para si os economistas que acompanhavam os democratas desde Bill Clinton. À base de estímulos, a economia cresceu, mas a desigualdade ficou intacta. Seu projeto para ampliar o acesso à saúde ficou longe de um sistema universal. Na política externa, dizia que “os Estados Unidos devem liderar pelo exemplo”, mas manteve a essência da “guerra ao terror” de George W. Bush. Para lhe fazer justiça, já no segundo mandato, quando os republicanos haviam reconquistado o controle do Congresso, bloqueando qualquer avanço interno, restabeleceu relações com Cuba e negociou o acordo nuclear com o Irã.
De seu lado, Boric também atrai interesse
por ter buscado alianças na centro-esquerda e incluído novas ênfases em sua
campanha do segundo turno, quando enfrentou José Antonio Kast, admirador de
Pinochet. Uma das questões a que deu mais atenção foi a segurança pública. “Os
revolucionários se provam quando são capazes de gerar ordem. Uma nova ordem,
nova porém ordem, que dê certezas e inclua também a maior parte dos que estavam
contra eles”, postou o chileno recentemente, reproduzindo texto do espanhol
Íñigo Errejón, deputado do Mais País.
Boric, que assume em março, busca acalmar
as expectativas que o cercam, refletidas nos milhares de chilenos que vão todos
os dias ao escritório de sua equipe de transição levar presentes, fazer pedidos
e contar suas histórias. Em sua primeira entrevista depois de eleito, ele
disse: “Tenho uma responsabilidade que assumo com orgulho e humildade, mas
convido a não idealizar pessoas (...). Todo líder que se torna imprescindível
termina sendo um mau líder”.
O chileno sabe, porém, que sua eleição está
ligada às demandas das ruas. Ele se compromete com o equilíbrio fiscal, mas
ressalta que tem de entregar reformas sociais. Nessa equação, o Estado chileno,
com uma das menores cargas tributárias da América Latina (20,7%), precisa
arrecadar mais. “Convido-os a que esse processo seja visto não como uma disputa
entre os que têm mais e os que têm menos, mas que os que têm mais hoje entendam
que a maneira de garantir o crescimento é por meio de uma maior coesão social
e, para isso, é preciso distribuir melhor”, afirmou na entrevista.
Na semana passada, Boric foi ao encontro
anual dos grandes empresários chilenos, que em boa parte apoiaram Kast. Depois
de abrir sua fala com uma citação do poeta Enrique Lihn sobre o cemitério de
Punta Arenas, onde “nem a morte pôde igualar os homens”, de novo reiterou seu
compromisso com a gradualidade. Foi aplaudido.
Obama se reelegeu, mas não ensejou um
movimento em defesa do próprio legado e, em meio a embates entre os democratas,
Donald Trump lhe sucedeu — é verdade que sem ganhar no voto popular, como já
acontecera com Bush em 2002. Uma vez que, no Chile, não há reeleição
consecutiva, a tarefa de Boric se quiser marcar época será tão ou mais
complexa.
*Editora de Mundo do GLOBO
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