sexta-feira, 29 de abril de 2022

Flávia Oliveira: A marionete presidencial

O Globo

O Brasil é uma ilha tomada de crises para onde se olhe; e o Planalto, um palácio tornado palanque eleitoral. Por duas vezes em menos de um mês, a sede do Executivo federal foi palco de afronta ao Poder Judiciário, com o presidente da República recebendo, defendendo e homenageando um deputado condenado, por 10 votos a 1, no Supremo Tribunal Federal, por atacar a ordem democrática e ameaçar ministros da Corte.

Jair Bolsonaro fez de Daniel Silveira a marionete que manobra para tensionar as relações entre os Poderes, fragilizar a democracia, aglutinar a base aliada mais radicalizada e distrair o país da vida real, que só piora. O ilusionismo político tem funcionado. Desde que veio à tona o escândalo da influência no Ministério da Educação de pastores evangélicos sem cargos nem mandato, o ambiente institucional se deteriorou, num bem-vindo — para o presidente candidato à reeleição — desvio de debate público.

Enquanto o Brasil se ocupa do conceito desvirtuado de liberdade de expressão — como direito absoluto de ofender desafetos e de enfraquecer uma democracia cansada de guerra — ou discute a constitucionalidade do perdão presidencial a uma sentença que nem transitou em julgado, a economia afunda, a vulnerabilidade social se agrava, a floresta arde, os povos indígenas são dizimados. O Ministério do Trabalho informou ontem que, no mês passado, o país conseguiu gerar 136.189 empregos com carteira assinada, o pior saldo do ano até aqui, inferior às 153.431 vagas formais de março de 2021, quando, vacinação incipiente, explodia o número de mortos pela segunda onda da Covid-19.

A economia perde fôlego, na esteira de uma conjuntura global adversa — da guerra na Ucrânia à oscilação nas cotações internacionais das commodities, petróleo, trigo e milho à frente; da perspectiva de elevação dos juros nos EUA ao recrudescimento da pandemia na China — e de um ambiente interno assentado em areia movediça. Nesta sexta-feira, o IBGE divulga os resultados do primeiro trimestre da Pnad Contínua. O Fundo Monetário Internacional sentenciou que o Brasil tem uma das dez maiores taxas de desocupação do mundo. O último dado disponível dava conta de 12 milhões de desempregados; dos ocupados, quatro em dez estavam na informalidade. É um mercado laboral carente de quantidade e de qualidade.

A renda míngua enquanto a inflação galopa. Em um ano, até fevereiro passado, o rendimento real dos que trabalham caiu 8,8%. A cada mês, o salário médio de admissão cai um pouco mais. Em março, pelos dados oficiais do Caged, o cadastro de contratações e demissões do governo, estava em R$ 1.872,07, 2% abaixo de fevereiro.

Por causa da escalada inflacionária, a taxa básica de juros, a Selic, está no maior nível em cinco anos, 11,75% ao ano — e subirá mais. O índice da meta de inflação, IPCA, caminha para o sétimo mês seguido com acumulado anual em dois dígitos. As projeções para este ano passam do dobro do objetivo perseguido pelo Banco Central, 3,5%. Na mesma quarta-feira em que o presidente acolheu Silveira e duas dezenas de deputados no Planalto para atacar o STF, o IBGE divulgara o IPCA-15.

O indicador tido como prévia da inflação disparou 1,73%, maior resultado para abril desde 1995 — 27 anos, portanto — e maior inflação mensal desde o início de 2003. Dos 377 itens pesquisados pelo instituto, 78,75% subiram de preço, evidência de que as remarcações são generalizadas: das tarifas de transportes aos alimentos, dos combustíveis aos remédios. Das 11 Regiões Metropolitanas observadas, só uma (Brasília, com 9,98%) não registra inflação acumulada de dois dígitos em 12 meses.

O Brasil tem metade da população com algum nível de insegurança alimentar e 19 milhões, dois Portugais, de famintos. O enfrentamento pífio à pandemia, com atraso na compra de vacinas e sabotagem nas medidas não farmacológicas para deter a transmissão, ceifou a vida de mais de 663 mil brasileiros num par de anos. A educação está mergulhada em gravíssima crise, decorrente tanto do fechamento das escolas na temporada de doença e morte por Covid-19 quanto de incompetência na gestão, ausência de políticas públicas, aparelhamento político-religioso do MEC e suspeita de corrupção. O Orçamento, com anuência do Legislativo, é segredo impenetrável.

A Amazônia Legal, no primeiro trimestre, teve o maior registro de desmatamento da série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe): 941,3 quilômetros quadrados de floresta derrubados. Uma menina ianomâmi, de 12 anos, foi estuprada e morta por garimpeiros na comunidade Aracaça (RR). Não mereceu uma palavra de lamento ou indignação do presidente que, não faz muito, vestiu cocar para receber a medalha de (de)mérito indígena. Bolsonaro tem preferido manipular seus títeres.

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