O Estado de S. Paulo
Não será fácil desaprender o mal que se
espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos do governo Bolsonaro.
Especialmente em tempos cinzentos, é
preciso “ter medo do guarda da esquina, mais do que do general”, como alertou
Pedro Aleixo quando da instauração do AI-5. Os subordinados adotam com
facilidade o abuso do poder se os desmandos não são reprimidos, mas dados como
positivos pelos superiores.
Segundo a teoria da aprendizagem formulada
por Gabriel Tarde e, depois, estudada por Sutherland, a conduta delitiva se
aprende em associação com as pessoas que a consideram positiva, gerando o
convencimento de estar a agir de maneira certa. Mesmo em face de condutas
cruéis, os freios inibitórios são anulados em decorrência do aplauso ao
comportamento malvado vindo de autoridades.
Seria a crueldade inerente à pessoa humana,
cujo primitivismo deve ser burilado pelos limites impostos pelo processo
educacional? Ou a malvadeza é aprendida nas relações sociais, de acordo com o
meio social no qual se está inserido?
Indo mais a fundo: o mal é inerente ao exercício do poder? Será um ingrediente ou um meio pelo qual obrigatoriamente o titular do poder se manifesta para mantê-lo ou para afirmá-lo? Haveria até mesmo com gosto pelo mal?
Essas perguntas tocam no fulcro da questão
da violência policial.
As perspectivas – a individual, congênita,
e a social – combinam-se, mas sem dúvida têm grande peso o incentivo e o elogio
a valores negativos vindos dos superiores. A probabilidade de punição (ou, ao
menos, a certeza da reprovação moral da conduta nociva) é essencial para o
exercício do poder se dar no limite do respeito aos demais.
Por isso a relação do governante com as
polícias que atuam com a força na rua é fator relevante, pois a forma de agir
do policial decorrerá do quadro de valores transmitido pela autoridade estatal.
Foi marcante o privilégio com que Jair
Bolsonaro tratou a Polícia Rodoviária Federal. Aumentou seu efetivo, garantiu
proventos na aposentadoria iguais ao do último salário, compareceu a
inaugurações de sedes e visitou postos policiais. Neste ano, repetidamente,
mencionou que o aumento salarial da Polícia Rodoviária Federal teria tratamento
especial, inclusive equiparando a remuneração de seus quadros superiores à dada
à Polícia Federal. A proximidade entre o presidente e a Polícia Rodoviária
Federal é manifesta.
A tornar mais significativa essa ligação,
Sergio Moro, no Ministério da Justiça, estendeu, inconstitucionalmente, a
atribuição da Polícia Rodoviária Federal para além das rodovias, quando é claro
o § 2.º, artigo 144 da Constituição, que edita: “§ 2.º A polícia rodoviária
federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em
carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias
federais”. Assim, por portaria ministerial, reiterada em grande parte por André
Mendonça como ministro da Justiça, deu-se atribuição para a Polícia Rodoviária
Federal atuar em ação conjunta com as polícias militares na área urbana. Ao
mesmo tempo, eliminaram-se as aulas de Direitos Humanos previstas no currículo
de formação do concursado.
Em consequência, a Polícia Rodoviária
Federal, sem expertise para
agir em operação policial nas favelas, passou a ser chamada a participar de
ações de repressão com o Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de
Janeiro. Veio, destarte, a integrar as forças policiais em duas chacinas na
mesma Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, em 11 de fevereiro deste ano, com 8
mortos; e recentemente, em 24 de maio, com o saldo aterrorizador de 23 mortos,
sendo metade dos assassinados sem antecedentes criminais.
O presidente da República festejou a ação
militar, cumprimentando os policiais pelo morticínio, que “neutralizou vinte”.
Negou-se a recriminar, contudo, a crueldade praticada por três policiais
rodoviários em Sergipe, que malvadamente lançaram gás lacrimogêneo e de pimenta
no porta-malas onde aprisionaram Genivaldo de Jesus Santos, que morreu por
asfixia, após ter sido seviciado e empurrado com brutalidade para dentro da
viatura.
Esses maus policiais, aos gritos e
palavrões, agiram com obsessão para afirmar sua superioridade diante de um
pobre cidadão, negro, tido por desprezível: uma pessoa “a ser neutralizada”,
como disse o presidente em face dos mortos da Vila Cruzeiro.
Assim, Genivaldo de Jesus Santos, parado
pelos policiais por trafegar na moto sem capacete, foi cruelmente morto pela
soberba do poder sem controle, em boa parte fruto do aplauso às violências
anteriores da corporação.
O poder pessoal do “guarda da esquina” deve
estar sob monitoramento, contido por lição de respeito ao direito dos cidadãos,
pois, do contrário, abre-se a possibilidade de vir a ser cruel ao ter o mal
como meio de afirmação de “autoridade”.
Assim, o exercício do poder, sem o bom
exemplo e a fiscalização vindos de cima, viabiliza a instauração do instinto de
desumanidade, tendo por consequência a crueldade, que, ensina Montaigne, é o
extremo de todos os vícios, a nefasta ausência total de piedade.
Não será fácil desaprender o mal que se
espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos Bolsonaro.
* Advogado, professor titular sênior da
Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e
ex-ministro da Justiça
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