O Globo
A semana foi marcada pela troca de
acusações entre progressistas da música pop e conservadores do sertanejo. De um
lado, conservadores atacaram os projetos culturais financiados pela Lei
Rouanet. De outro, progressistas criticaram as contratações de shows com
dispensa de licitação pelas prefeituras. Dos dois lados proliferaram acusações
de imoralidade e ilicitude. O resultado da contenda é o descrédito generalizado
ao financiamento público à cultura.
A polêmica começou com um vídeo curto que
circulou nos meios bolsonaristas. O clipe mostrava trecho de um show da dupla
Zé Neto & Cristiano na cidade de Sorriso, em Mato Grosso, em que Zé Neto
dizia:
— Nós somos artistas que não dependemos de
Lei Rouanet. O nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer
tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou não.
A menção à tatuagem íntima era uma
referência à cantora Anitta.
A crítica à Lei Rouanet é um velho tópico do bolsonarismo. A lei de incentivo cultural foi criada no governo Collor. Por meio dela, produtores inscrevem projetos, os submetem à análise técnica do governo federal, e depois empresas podem financiá-los, abatendo o valor do Imposto de Renda devido. Os projetos precisam atender a critérios técnicos estabelecidos pelo governo, e quem decide qual é financiado ou não são as empresas, que promovem assim suas marcas.
O bolsonarismo sempre insinuou que a lei
era usada pelos governos petistas para cooptar o setor cultural. Era como se as
posições progressistas da classe artística fossem uma espécie de retribuição
pelos recursos públicos. A acusação nunca fez o menor sentido porque não eram
os governos, e sim empresas, como Bradesco ou Vale, que determinavam que
projeto receberia financiamento. Se a acusação já não fazia sentido no período
dos governos Lula e Dilma, ficou ainda mais sem sentido quando quem comanda a
estrutura federal de cultura é Jair Bolsonaro. Mas, no bate-boca irracional da
polarização, as acusações não precisam fazer sentido.
Quando Zé Neto acusou Anitta de receber
dinheiro da Lei Rouanet, estava sugerindo que seu provável voto em Lula tinha
sido comprado por verbas públicas — acusação além de tudo falsa, porque ela
nunca recebeu dinheiro da Rouanet. Ele contrapôs essa dependência atribuída a
Anitta de recursos públicos a sua própria carreira, que teria sido construída
com o cachê de shows pagos com dinheiro privado.
Só que a acusação a Anitta foi rapidamente
rebatida, pelos apoiadores da cantora, com uma série de denúncias no Twitter
mostrando que Zé Neto e outros sertanejos bolsonaristas, como Gusttavo Lima,
eram contratados por prefeituras do interior com dispensa de licitação. O
próprio show de Zé Neto em Sorriso tinha sido contratado pela prefeitura por R$
400 mil.
A esquerda acusava os sertanejos de ser
cínicos ao criticar a Rouanet, já que eles mesmos eram contratados com verba
pública com dispensa de licitação, modalidade em que os controles seriam mais
frouxos que na Lei Rouanet. Os apoiadores de Anitta sugeriram também que
prefeituras de direita financiavam cantores conservadores por meio do pagamento
de cachês milionários sem controle — devolvendo as acusações tradicionalmente
feitas à Rouanet.
A dispensa de licitação para a contratação
de artistas é uma prática legítima e bem estabelecida como instrumento de
políticas culturais. Em geral, para compra e contratação de serviços, a
administração pública precisa comparar preços, por meio de levantamento ou
pregão. Quando os serviços não são comparáveis, como é o caso da apresentação
de artistas, a licitação não se aplica. A prefeitura pode contratar
diretamente, desde que pague valores de mercado. Todas as prefeituras e
governos fazem assim, inclusive os de esquerda.
Enquanto ativistas de esquerda e de direita
atacavam a Lei Rouanet e a contratação de shows pelas prefeituras, o público
que assistia ao debate se convencia de que as diferentes modalidades de
financiamento da cultura eram todas corrompidas e usadas para fins políticos.
Neste momento crítico, com recursos federais escassos e ainda sob o impacto
devastador da pandemia, o meio cultural conseguiu espalhar suspeitas
generalizadas sobre o financiamento público, se afogando na lama da
polarização.
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