Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O Brasil oculto da balbúrdia tem feito
demonstrações agressivas, indicativas de um período de inconformismo
intolerante que pode comprometer a democracia
As semanas que antecederam o primeiro e o
segundo turno das eleições de outubro de 2022 acrescentaram revelações sobre o
estado de anomia em que se encontra a sociedade brasileira. Indicaram qual é de
fato o legado politicamente enfermo do presidente que em dois meses deixará o
poder, porque em confronto com a Constituição e a democracia.
Ainda uma semana depois do reconhecimento
do resultado da votação, definido o nome do eleito, ajuntamentos estão
ocorrendo em praças e portas de quartéis, os agitadores pedindo ditadura
militar. Estranhamente, os comandantes militares, cujos quartéis são
assediados, estão calados.
São decorrências da política de desmonte do
Estado, das instituições e da própria sociedade pelo regime de 1º de janeiro de
2019, nas ameaças subversivas à ordem política.
Estamos em face de ameaças a uma inevitável e decisiva mudança social e política, cujos fatores vinham sendo gestados e acumulados desde o golpe de 1964. Bolsonaro, tenha ou não consciência disso, personifica o momento final de decadência do tenentismo.
Foram esses fatores atenuados com a
redemocratização e a Nova República, e não suprimidos. Voltaram à superfície
com o bolsonarismo na suposição falsa de que na eleição de 2018 a população
pedia a volta da ditadura militar.
A anomia desta etapa da história brasileira
expressa-se na desorganização social decorrente da desregulamentação política
das relações sociais. Os regimes políticos repressivos, que expressam momentos
como este, são criadores de situações de insegurança e medo que arrastam
consigo para a nulidade da ineficácia e anulam valores e normas de conduta e de
sociabilidade. A sociedade ficou confusa e desorientada, não só o presidente da
República.
A tendência autoritária do governo que
termina tem tido como característica a transgressão do que é próprio de mandato
obtido de forma legal e constitucional. Porém indevidamente assumido como
renúncia do eleitorado ao que é próprio de suas atribuições, no questionamento
do pressuposto da alternância dos partidos no poder, em que se empenhou o
governo nestes quase quatro anos.
O aparelhamento das instituições para
consumar a tirania do poder pessoal tornou-se entre nós uma forma patológica de
corroer as bases do que é propriamente a realidade social e política. Um meio
de inviabilizar a vida coletiva e anular a competência dos cidadãos para
reconstruir o tecido social em face da desordem personificada pelo próprio
governante.
No limite, desordem instrumentalizada pelo
oportunismo do consórcio de outro poder no poder, resultante dos fatores de
tensão, de crise e de ruptura que nestes anos comprometeu a continuidade da
sociedade que pedia socorro político urgente. O resultado da eleição foi um
indicativo.
A questão é muito mais complicada do que a
muitos parece. Na transição, disfarçada por algumas medidas protocolares, o governo
que termina continuará ativo e barulhento no poder paralelo das redes, dos
grupos de ativistas, como o dos caminhoneiros e o dos manifestantes de porta de
quartel. Mas o ativismo antidemocrático persistente indica que Jair Messias
manda muito menos do que supõe. Quando muito faz teatro de uma proximidade e de
uma conivência que os militares não podem assumir porque funcionários do
Estado, sujeitos às normas e aos rigores da lei. Nem o povaréu da agitação tem
qualquer competência para levar o país à insurreição.
Fora do poder e por isso politicamente
fraco, Bolsonaro dividirá o bolsonarismo. Os que parasitaram o Estado, avulsos
e parentes, militares e civis, serão mandados de volta ao lugar de onde vieram.
Sobrará a turba dos bajuladores e paus mandados de rua, fora do controle do
governo oculto e do próprio Bolsonaro. As multidões reacionárias poderão gerar
instabilidade. Para elas haverá a lei.
Os ajuntamentos subversivos de rua, dos
inconformados, contra a vontade majoritária do eleitorado, dá cara e voz ao
Brasil paralelo e ilegal instigado por ações e omissões do próprio presidente
da República. O Brasil oculto da balbúrdia tem feito demonstrações agressivas e
mesmo violentas, indicativas de um período de inconformismo intolerante que
pode comprometer a democracia que tenta renascer. Tem características de
comportamento de multidão, como o define Le Bon, o do sujeito coletivo
divorciado da razão, de certo modo enlouquecido, como nos linchamentos.
As classes e os setores sociais mais
incapazes de participar do processo de regeneração social e política, porque
menos identificados com a sociedade a que pertencem sem querer pertencer, são
os que com mais facilidade se empenham em transformar a anomia em identidade
coletiva da minoria de que fazem parte.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
2 comentários:
Os cães ladram enquanto a caravana passa.
Os cães e os bolsonaristas não sabem o que fazem,eu digo ''não sabem'' no sentido espiritualista.
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