sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Ruth de Aquino - A escolha de ser livre como Gal Costa

O Globo

A última ousadia da musa baiana foi viver sua liberdade entre quatro paredes e não ceder às redes sociais

Minha primeira reportagem na vida, em 1974, foi o fim do Píer de Ipanema. As dunas do barato já eram apelidadas de “dunas da Gal”. Eu tinha saído da casa de meus pais, em Copacabana, para morar com meu primeiro amor, em Ipanema. Não casei, nem no civil. Achava as cerimônias religiosas de casamento – em que o pai entrega a noiva, de branco virginal, para o noivo no altar – o ritual simbólico do machismo. Não podia nem me imaginar nessa situação. Amigos me alertavam: com sua maneira de ser e pensar, vai ficar sozinha, homens terão medo de você e de sua liberdade. O vaticínio não se concretizou.

Nunca usei aliança nem troquei de sobrenome. Tive dois filhos, de dois homens, professores universitários. Não me depilava em parte alguma do corpo. Achava bonito e libertário. Fazia topless e nudismo nas praias europeias, porque no Rio era impossível, e olha que tentei. Quanta hipocrisia sexual numa cidade em que os biquínis mostram o mais recôndito do ser. E mais não conto, porque a vida da colunista não deve interessar a vocês. Talvez chocasse leitores – e leitoras. O Brasil, quem diria, encaretou em meio século.

Gal Costa chocou o cenário masculino da MPB ao escancarar coxas roliças e morenas, sentando de pernas abertas. O convite, só cabia a ela aceitar. Chocou a ditadura com o close no triângulo do biquíni vermelho, numa capa censurada do disco Índia. Chocou quando posou nua aos 40 anos para uma revista. Chocou ao revelar no palco os seios maduros de 50 anos. Foi criticada até por mulheres. Como a Maria da Graça, a Gracinha, se tornou a musa da Tropicália, só ela poderia dizer. Mas nunca foi seu estilo sair revelando detalhes da vida pessoal.

Marina Caruso, editora de Ela, repostou uma bela e franca entrevista com Gal Costa, de 2019. “No final do encontro, tomei um pito da Gal: ‘Você não acha que vou discutir minha sexualidade com uma jornalista, não é mesmo?’, disse ela, com a voz mais doce do mundo”. Quando Gal posou nua, Caetano Veloso ilustrou com o seguinte texto: “Eu e Gal sempre brochamos todas as vezes que tentamos brincar de namorar. Eu tentava seduzi-la com um disco do Bob Dylan e papo-furado. Ela sempre resistiu e terminávamos as noites às gargalhadas. Acho que na época dos Doces Bárbaros, na Bahia, nós tentamos fingir que íamos namorar no hotel onde ela estava hospedada. Foi legal porque aí a vi nua como ela aparece em algumas dessas fotos bonitas e carinhosas que a Marisa (Alvarez Lima) fez. Tomando banho. Gal é linda. Tem uma boca linda e é magnífico que por essa boca saia exatamente essa voz”.

Gal Costa nos chocou com sua discrição ferrenha, em tempos de exposição virtual gratuita ou paga. Não alardeava a adoção do filho Gabriel nem seus namoros ou a relação com sua companheira Wilma Petrillo. Não contou que se internou em hospital para retirar um nódulo. Não sabíamos de nada, só de seu voto em Lula. Não foi nem divulgada oficialmente a causa de sua morte. Choveram especulações de infarto, câncer, embolia pulmonar.

Em entrevista para a Folha de S.Paulo em 2015, a diva baiana disse: “Minha vida pessoal interessa a mim, a mais ninguém. O que interessa às pessoas é meu canto, meu trabalho. Liberdade é um valor que eu passo, mas você não precisa se arreganhar para passar isso. É só você ser”. O exercício da liberdade, hoje, se confunde com confissões desbragadas e constrangedoras nas redes sociais. A grande e última ousadia de Gal Costa foi a de viver a liberdade entre quatro paredes.

Dizia-se que ela era uma mulher à frente de seu tempo. Não sei quando nós, mulheres livres, nos encontraremos com o tempo. Porque ele não chega nunca.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Sua sensibilidade me encanta.

ADEMAR AMANCIO disse...

Adorei o último parágrafo.