O Globo
Raras vezes houve traficância política tão
espúria no Congresso Nacional, em detrimento de um Brasil viável no futuro
Existe um ponto cego natural no campo de visão de todo ser humano. Mesmo para quem é dotado de visão perfeita, enxerga atrevidamente bem de longe e perto e nunca terá necessidade de usar óculos. Esse ponto cego tem nome — mancha de Mariotte, em homenagem ao físico francês que o descobriu quatro séculos atrás. Nunca nos impediu de tocar a vida. Aliás, podemos ignorar a existência dessa minúscula área da retina de cada olho desprovida de receptores de luz. Isso porque as duas manchas monoculares não se sobrepõem, e nossa visão binocular compensa esse defeito de fábrica que, não fosse assim, nos impediria de ver em toda a amplitude aquilo que olhamos.
O caso do Brasil atual é inverso. A mancha
da cegueira nacional não é inata nem pequena. É como se toda a terra, águas, ar
e vida nacional estivessem desprovidos de receptores de luz. Uma cegueira que
nos impede de reagir àquilo que desfila a nossa frente e que olhamos com os
dois olhos bem abertos: a destruição a marretadas de leis, instituições, Estado
de Direito, civilidade em sociedade. Ou, pelo menos, assim pareceu ao longo
desta semana particularmente sombria. Raras vezes houve traficância política
tão espúria no Congresso Nacional, em detrimento de um Brasil viável no futuro.
Nesse quesito, igualam-se em cinismo, demagogia e hipocrisia os bolsonaristas e
oposicionistas que votaram (469 votos a 17) a favor da PEC de estelionato
eleitoral, embrulhada em papel de presente social. Na verdade, não se igualam.
Os primeiros foram mais explícitos, não precisavam esconder seu interesse pessoal,
os segundos se mostraram mais covardes. Como escreveu Hélio Schwartsman na
Folha de S.Paulo no artigo “Falso dilema”, “paro um pouco antes de concluir
que, com uma oposição dessas, o Brasil merece mesmo ser governado por Jair
Bolsonaro e seus comparsas”.
Além da opção nacional por não querer ver,
marchamos rumo ao precipício empunhando um apagão cívico que, a cada ciclo
eleitoral, se torna menos desculpável. Segundo dados elaborados pelo Instituto
Quaest a pedido do RenovaBR, só 15% dos eleitores brasileiros lembram em quem
votaram para o Congresso na eleição de 2018! E, mesmo assim, se consideram no
direito de reclamar: mais de 65% dos entrevistados se declararam insatisfeitos
com a atuação dos congressistas. Não espanta que mais da metade (55%) admita não
saber para que serve um deputado, justo quando a gula de poder no Congresso
atinge níveis e$catológicos. Faltam 77 dias para que os 156,4 milhões de
brasileiros aptos a votar façam suas escolhas — se é que chegaremos lá em
condição de pensar num futuro decente.
Nos 100 anos de sigilo que o bolsonarismo
tenta impor à memória nacional, não pode caber também o pretendido apagão da
cultura, da educação cívica, ambiental, científica e sexual brasileiras. Como
explicar a vida e o Brasil de hoje ao adulto de amanhã que veio ao mundo num
hospital público enquanto a mãe era violentada por um anestesista/estuprador em
série? Como, no futuro, explicar o Brasil de 2022 ao bebê de 1 mês e à sua irmã
de 6 anos que na semana passada perderam o pai, assassinado por gostar de ser
petista? O que fará no Brasil de amanhã a menina loirinha de menos de 2 anos
com a foto em que aparece como coadjuvante da felicidade familiar, junto a um
bolo de aniversário em formato de revólver calibre 38? Sairá atirando na
democracia como o avô, tios e pai? Ou terá a chance de conviver com outras
gentes?
Está tudo em aberto. Não só aqui, no mundo
todo.
Trinta e cinco anos atrás, o historiador americano Arthur M. Schlesinger Jr., um dos conselheiros mais próximos do ouvido de John Kennedy, debruçou-se sobre a despedida do século em que vivia. “Os dois maiores vilões pereceram — o fascismo com um estrondo, o comunismo com um gemido”, escreveu. Acrescentou que o triunfalismo do mundo democrático obscureceu a precariedade dessa vitória. “Se, no século XXI, o sistema falhar na construção de um mundo mais humano, próspero e pacífico, como falhou no século XX, estará lançado o convite para a emergência de credos alternativos assemelhados ao fascismo e ao comunismo”, avisou. Acertou só pela metade — justamente a que nos toca.
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