domingo, 18 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Protecionismo americano levanta preocupação

O Globo

Em vez de repetir políticas que deram errado no passado, Brasil deveria aproveitar as novas oportunidades

Em discurso recente, o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, deixou clara uma inflexão estratégica na política americana que deverá ter impacto no mundo todo, em especial no Brasil. De modo previsível, destacou a disputa com a China como o maior desafio do futuro próximo. A surpresa foi a forma transparente como apresentou a resposta americana: uma guinada na política externa conduzida pelo país há décadas.

Em vez de insistir na premissa de que a integração econômica tornaria os países mais “responsáveis e abertos”, Sullivan usou o exemplo chinês para justificar uma reviravolta no conjunto de princípios outrora conhecido como Consenso de Washington. No lugar de livre mercado, abertura comercial e competição, fez uma defesa despudorada do retorno do protecionismo e da política industrial, dois fetiches do pensamento heterodoxo.

Por mais que a rivalidade política impeça ambos de admitir, há nítida continuidade entre a política de Joe Biden e a praticada no governo Donald Trump. A guerra comercial contra a China, e suas barreiras à importação, apenas cedeu espaço a uma onda de subsídios estimada em até US$ 100 bilhões ao ano na próxima década, mais que o dobro dos concedidos antes da pandemia.

Disfarçados sob o previsível pretexto da “necessidade estratégica”, eles somam US$ 465 bilhões para erguer fábricas de semicondutores e investir na transição para energia limpa e chegam a quase US$ 1 trilhão incluindo obras de infraestrutura. Na visão de Biden, a crise nas cadeias globais de suprimento na pandemia e as consequências da guerra na Ucrânia no mercado de energia são prévias de algo pior por vir — e o país precisa se proteger dos riscos.

Nos riscos associados ao protecionismo, poucos falam. Basta lembrar o caso brasileiro para entender o que costuma dar errado. Os governos petistas enterraram quase US$ 26,4 bilhões no projeto de uma indústria naval que, literalmente, naufragou. Os resultados de políticas de proteção à indústria e subsídios por décadas e décadas resultaram em quase nada relevante — e não faltou política industrial. Cada segmento protegido encarece outros, forçados a comprar do favorecido. Quem paga a conta? O consumidor e a economia, que perde produtividade e cresce menos. O ensimesmamento brasileiro até hoje alija o país das cadeias globais na comparação com México, China, Índia ou África do Sul.

Agora, o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem usado o exemplo americano como evidência de que é necessário ressuscitar as políticas do passado. Mas não precisamos copiar os erros dos americanos, e sim entender as oportunidades que surgiram. É uma lástima que, ao reunir em janeiro 11 países da América Latina para os quais os Estados Unidos querem atrair parte da produção industrial da China, o Brasil tenha ficado de fora. Lula já era presidente, não dá para culpar o antecessor.

É pouco provável que o mundo volte a ser tão protecionista como nos anos 1930 ou depois da Segunda Guerra. Em vez de insistir em erros do passado, o governo Lula deveria abrir o país. A meta deve ser elevar a produtividade das empresas locais com mais competição. É o momento não de defender o que já deu errado tantas vezes, mas de aposentar o discurso protecionista e preparar o Brasil para absorver investimentos que sairão da China para países mais próximos dos Estados Unidos.

Inauguração da Norte-Sul demonstra importância das ferrovias privadas

O Globo

Estrada de ferro essencial é concluída com quase 40 anos de atraso, num país que ainda privilegia o caminhão

Símbolo de corrupção quando foi lançada no governo José Sarney, em 1987, a Ferrovia Norte-Sul precisou do setor privado para ser enfim concluída, conectando por trilhos os portos de Itaqui (MA) e Santos (SP). Os novos trechos, operados pelo grupo Rumo, atendem a quatro terminais construídos nos últimos dois anos para permitir o transporte de produtos como soja, milho e açúcar. Ao cortar o país, a ferrovia permitirá escoar com mais eficiência a produção agrícola de Minas Gerais, Goiás e outros estados.

O atraso foi de quase 40 anos, e o custo para o contribuinte chega perto de R$ 45 bilhões em valores corrigidos. Além da corrupção desmascarada desde o início da obra, a Norte-Sul é um exemplo perfeito dos males que acometem os investimentos brasileiros em infraestrutura.

A escolha torta por privilegiar as rodovias transformou o Brasil num país dependente dos caminhões, situação que contrasta com outras nações continentais. Na Rússia, as ferrovias representam 81% da matriz de transportes. Os Estados Unidos têm a maior malha ferroviária do mundo, com quase 300 mil quilômetros, 30 por mil quilômetros quadrados de superfície (só a Índia tem maior densidade ferroviária).

O Brasil, enquanto isso, patina com 30 mil quilômetros, apenas 3,6 por mil quilômetros quadrados de área — um retrocesso em relação aos 38 mil quilômetros que tínhamos em 1960. Ao mesmo tempo, 93% do minério de ferro e 49% dos produtos agrícolas exportados a granel chegam aos portos por trilhos. Qual não seria o impacto na competitividade brasileira de uma malha ferroviária mais robusta?

Tragicamente, os erros no setor se sucederam. Depois da falência de ferrovias nos anos 1950, o governo Juscelino Kubitschek — que sempre preferiu a indústria automotiva — criou uma estatal, a Rede Ferroviária Federal S.A., reunindo empresas em estágio pré-falimentar. A RFFSA padeceu dos males das estatais: virou cabide de empregos e foco de desvios, sem capacidade de investimento, até começar a ser privatizada a partir de 1996. A volta da iniciativa privada ao setor atraiu investimentos de R$ 142 bilhões. De 1997 para 2021, a carga transportada dobrou para 500 milhões de toneladas.

No caso da Norte-Sul, foi preciso esperar diversas tentativas, com licitações e relicitações, até a entrada definitiva do capital privado em 2019. Fora os R$ 2,7 bilhões pagos no leilão pela concessão do último trecho da ferrovia, investimentos de R$ 4 bilhões permitiram enfim concluir a obra. Nas décadas de idas e vindas, quase todos os presidentes da República promoveram inaugurações parciais, mas só na última sexta-feira ela ficou pronta.

A conclusão da Norte-Sul precisa significar a intenção brasileira de dar preferência às ferrovias no transporte de cargas pesadas, principalmente para exportação. Sem a volta da iniciativa privada às estradas de ferro, produtores estariam ainda na dependência de caminhões e de estradas em condições precárias. A concessão da malha ferroviária à iniciativa privada precisa ser um projeto de Estado, não de governos.

Fase da acomodação

Folha de S. Paulo

Nível razoável de popularidade de Lula favorece empenho na agenda administrativa

A política numa democracia vivaz e eficiente deveria produzir muito barulho em período eleitoral, mas pouco quando a tarefa precípua do vencedor passa a ser a de materializar promessas de campanha.

Os resultados da mais recente pesquisa Datafolha sobre popularidade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que logo completará seis meses de mandato, propiciam certo nível de conforto para o presidente petista dedicar-se cada vez mais aos temas administrativos e menos a rompantes e bravatas.

Conforto, nestes tempos de extensa divisão ideológica da sociedade, não significa que o mandatário vá nadar num oceano de boa vontade popular, como ocorria no passado. Conseguir manter-se aprovado por mais de um terço e rejeitado por menos que outro terço torna-se um feito considerável.

Dos brasileiros em idade de votar, 37% julgam ótima ou boa a gestão de Lula, e 27% a avaliam como ruim ou péssima. Os números coletados até esta quarta (14) pelo instituto não diferem estatisticamente dos apurados no final de março.

A estabilidade do quadro que vem desde a campanha de 2022 perpassa também grandes estratos da pesquisa. Quanto mais pobre o eleitor, mais satisfeito com a gestão. Evangélicos a criticam mais que católicos. Mais da metade dos entrevistados se diz muito inclinada ao petismo (29%) ou ao bolsonarismo (25%).

De mais tranquilizador para Lula, não há sangria de popularidade a estancar. A inflação, sempre ameaçadora nesse quesito, foi freada graças à tão atacada política restritiva do Banco Central. A atividade da economia e o emprego também evoluem razoavelmente bem, depois de terem surpreendido favoravelmente em 2022.

Houve mérito do presidente, que se convenceu dos argumentos de seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e reduziu o potencial de estrago de ideias acalentadas por lobistas e economistas ditos heterodoxos que orbitam o PT.

O chefe do governo agora se mostra mais empenhado em enfrentar a sua maior fraqueza, que repousa na baixa adesão de parlamentares à situação no Congresso Nacional.

São sinais alvissareiros. A gestão parece ter-se convencido de que precisa abandonar a demagogia e entrar numa fase de relativa acomodação política —e de muito trabalho técnico e administrativo— para tentar fazer avançar uma agenda de propostas que favoreça o desenvolvimento do país.

Em terreno polarizado, medidas que melhorem a vida da maioria da população constituem a única fórmula da sobrevivência política.

Reforma para todos

Folha de S. Paulo

Ao Planalto compete esclarecer que a mudança dos impostos interessa à maioria

A mudança do sistema de impostos é o grande, talvez único, projeto de reforma econômica de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Tendo em vista a relevância e a complexidade da empreitada, o presidente deveria dedicar-lhe mais esforço político.

Aproximam-se semanas em que os conflitos do debate tributário vão se tornar agudos. As diretrizes da reforma ganharão substância em uma proposta de emenda constitucional e, de modo quase imediato, devem ser delineadas ou definidas alíquotas e bases de cálculo no projeto da lei que regulará, na prática, as mudanças.

As tentativas frustradas nas últimas décadas serviram para amadurecer o entendimento do tema. O tempo sedimentou ideias como a cobrança de impostos sobre mercadorias nos locais de consumo. Mas há resistências e receios.

É certo que alguns setores serão mais onerados em relação à situação atual. Estados e municípios perderão autonomia devido à uniformização de normas e unificação de ICMS e ISS. Alteram-se preços, receitas, investimentos.

Os remanejamentos da carga tributária, porém, são uma das consequências inevitáveis da reforma. Eventuais perdas locais e, em menor medida, setoriais podem ter reparações provisórias e serão compensadas, a longo prazo, por ganhos de eficiência econômica.

À medida que se aproximam os dias de definições cruciais, interesses ou receios particularistas ganham força. Parte dos governadores quer limitar o alcance da mudança à esfera federal. Prefeitos se mobilizam para manter o ISS. Serviços e agropecuária querem preservar o status quo. Se não se opõem de fato ao projeto, barganham compensações maiores.

Sem esclarecimento, mobilização e compromisso político, o texto que estabelece a imprescindível simplificação dos tributos incidentes sobre a produção e o consumo pode acabar desfigurado.

Até aqui, a negociação está a cargo apenas de uma secretaria do ministério da Fazenda e do relator da matéria no Congresso. O Planalto terá de entrar em campo.

A missão, sem dúvida, pode causar desgaste da imagem presidencial —haverá insatisfeitos. Mas cabe a Lula a difusão da ideia de que a reforma é de interesse geral. Além do mais, dentro dos estreitos limites das finanças federais, o governo tem de oferecer incentivos para a adesão ao novo modelo.

A negociação necessariamente envolverá governadores, prefeitos e entidades empresariais. Aos líderes compete o esclarecimento público a respeito dos ganhos para a maioria silenciosa.

Milhões de eleitores buscam um candidato

O Estado de S. Paulo

Maioria dos eleitores à direita espera alguém genuinamente conservador e liberal

É um fato gritante que a esquerda é menor que Lula, ao menos eleitoralmente. Basta olhar o deserto de alternativas na seara progressista. Lula (pessoalmente ou por interposta figura) disputa a Presidência desde 1989. As dissidências foram trituradas pela máquina de difamação petista. O desempenho do PT em eleições subnacionais não é sequer uma sombra dos sucessos de Lula no Executivo federal. Para conquistar seu primeiro mandato, ele apelou a um vice empresário e engoliu a seco as reformas “neoliberais” de FHC. No poder, transigiu com a direita no Congresso. Quando prevaleceram o voluntarismo e o dogmatismo petistas na gestão Dilma Rousseff, o poste de Lula foi defenestrado. Em 2022, o marketing da “frente ampla”, mesmo sendo uma manifesta impostura, foi crucial para angariar os votos que, por estreitíssima margem, reconduziram Lula ao Planalto. Ainda assim, ele perdeu nas classes média e alta e no Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Nada ilustra melhor a estatura da esquerda hoje que as meras 130 cadeiras na Câmara conferidas pelo eleitorado.

Mas se Lula é maior que a esquerda, Jair Bolsonaro é muito menor que a direita, como mostra a desproporção entre os votos dados a ele e à direita no Congresso. Uma pesquisa dos Institutos Locomotiva e Ideia com os eleitores de Bolsonaro no segundo turno revelou que só 18% acreditam que ele seja a única figura com força para representar a direita. Já 54% dizem existir pessoas que podem ter força para representar a direita sem o apoio de Bolsonaro. E isso sem contar os eleitores de direita e de centro que, aterrorizados com um novo mandato do “capitão”, votaram em Lula a contragosto.

Outro dado revelador é que bolsonaristas e lulopetistas têm muito mais em comum do que gostariam de admitir. A menor divergência se dá justamente na política econômica. Por exemplo, dos eleitores de Lula e Bolsonaro, 54% e 40%, respectivamente, acreditam que o governo deveria intervir na política monetária do Banco Central; e 58% e 37%, que deveria ampliar a intervenção na economia para garantir o crescimento. Segundo os pesquisadores, no eleitorado à direita é precisamente o enclave de bolsonaristas radicais que mais favorece o intervencionismo e o estatismo tão caros aos petistas. É uma versão peculiarmente tupiniquim da “teoria da ferradura”, segundo a qual os extremos à esquerda e à direita, antes de estarem em polos distantes de um continuum político linear, aproximam-se como as duas pontas de uma ferradura.

Só há surpresa para os incautos. A eleição de Lula não foi um triunfo da “democracia” contra a “autocracia”.

Duas palavras bastam para exprimir o apreço do lulopetismo pela democracia: mensalão e petrolão. Quando seu desenvolvimentismo foi implantado sem freios, o que se viu foi a pior recessão da história recente do País. Podese apontar divergências ideológicas entre o lulopetismo e o bolsonarismo, pode-se discutir qual é menos democrático, mas o fato é que a disputa se deu entre dois projetos de poder populistas e autoritários, ou, antes, entre as aversões a um e outro: ao fim, o antibolsonarismo superou o antipetismo por mísero 1,8 ponto porcentual.

Mas o Brasil não está condenado a essa dialética negativa e asfixiante. As manifestações multitudinárias pós2013, a composição do Congresso e até pesquisas da Fundação Perseu Abramo, o braço intelectual do PT, expõem o tamanho da insatisfação com a agenda petista. Bolsonaro, por sua vez, usurpou nas campanhas eleitorais o ideário conservador e liberal. Mas a pesquisa do Locomotiva revela que um contingente majoritário da direita não comprou o engodo. São eleitores que sabem perfeitamente bem que o autoritarismo de Bolsonaro violenta frontalmente valores caros aos conservadores (como a estabilidade das instituições), aos liberais (como a pluralidade política e a liberdade econômica) e a ambos (como a desconfiança do poder centralizado). Não faltam pessoas e instituições, como este jornal, engajadas na promoção desses valores. O que há, sim, para parafrasear uma peça de Luigi Pirandello, são dezenas de milhões de eleitores à procura de um candidato.

EUA e China buscam ‘estabilidade estratégica’

O Estado de S. Paulo

Visita do secretário de Estado dos EUA à China simboliza tentativa de encontrar mecanismos de cooperação em desafios globais, competição econômica justa e convivência geopolítica

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, realizará a partir de hoje sua primeira visita a Pequim. Dias atrás, encontraram-se em Viena o conselheiro de segurança dos EUA, Jake Sullivan, e o chanceler chinês, Wang Yi. Na ocasião, a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, advogou por um “engajamento construtivo” na economia e meio ambiente. Blinken pode abrir as portas para uma visita de Yellen e autoridades comerciais e ambientais. Em novembro, o presidente chinês, Xi Jinping, irá aos EUA para o Fórum da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico.

São sinais de que as partes da principal relação bilateral do mundo estão buscando o que analistas chamam “estabilidade estratégica”. Mas é sintomático que a visita de Blinken tenha sido adiada por meses após um balão chinês ser abatido nos EUA, e que quase tenha sido adiada de novo em razão de um acordo da China para estabelecer bases de inteligência em Cuba. Esses incidentes revelam o quão longo e pedregoso será o caminho rumo à desejada “estabilidade estratégica”.

Sua conquista depende de um tripé: cooperação em desafios globais (como mudanças climáticas ou pandemias); trocas e disputas econômicas justas; e convivência pacífica entre os sistemas democrático e autocrático.

O primeiro ponto é mais simples. Pode haver ruídos entre as expectativas de um país e as necessidades do outro em relação à descarbonização ou à prevenção de patógenos. Mas em tese são interesses convergentes.

O segundo aspecto é mais complicado. As amplas relações econômicas entre EUA e China – a mais óbvia diferença em relação à velha guerra fria – podem ser um facilitador, mas também um complicador.

Como disse, em consonância com Yellen, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “o desacoplamento (da economia da China) não é viável, desejável e sequer prático”. Yellen, contudo, advertiu contra práticas comerciais chinesas “injustas”, e Von der Leyen apontou que a China “virou a página da era de ‘reforma e abertura’ e se move para uma nova era de ‘segurança e controle’”. São preocupações que indicam interferências na esfera econômica do terceiro e mais delicado aspecto do tripé: a rivalidade militar.

Autoridades traduzem o desafio de reduzir essa interferência com expressões como “competição, não conflito”, ou deixar o comércio aberto exceto por “um pequeno jardim e uma cerca alta”. Os EUA, por exemplo, decretaram embargos em semicondutores e outras tecnologias estratégicas. Mas a China ameaça retaliar contra essas manobras que considera economicamente injustas.

Ainda mais arriscados que essa mistura volátil de competição econômica e militar são os atritos estritamente geopolíticos. A China busca expandir sua atuação em zonas tradicionais de influência do Ocidente, como o Oriente Médio, ao mesmo tempo que os EUA reforçam alianças no Pacífico. Isso sem falar da questão mais volátil de todas: Taiwan. O risco é de um ciclo vicioso de ação e reação, no qual o que para uma parte é visto como “dissuasão”, para a outra é “ameaça”.

A guerra fria deixou lições. Após a crise dos mísseis de Cuba (1962), autoridades de EUA e URSS em múltiplos níveis passaram a conversar com mais regularidade para reduzir riscos de conflitos acidentais com exercícios militares e contraespionagem. Canais assim seriam particularmente importantes para estabelecer parâmetros mútuos no emprego militar da Inteligência Artificial.

“Creio ser possível criar uma ordem mundial com base em regras que Europa, China e Índia possam compartilhar”, disse recentemente Henry Kissinger. Vindas de quem vêm – um realista por excelência que, além de ser, por sua inteligência e experiência, plausivelmente a maior autoridade viva em relações internacionais, também arquitetou a reaproximação entre EUA e China na guerra fria –, são palavras reconfortantes.

O ótimo é inimigo do bom. Décadas de estranhamentos entre EUA e China são talvez o que de melhor se possa esperar. Não é o melhor dos mundos. Mas, se ambos conseguirem evitar que o mundo seja destruído por uma 3.ª Guerra Mundial, já será bom o suficiente.

Desmatamento como legado

O Estado de S. Paulo

Passivo ambiental de Bolsonaro é simbolizado pela devastação no último ano de seu governo

O principal legado do governo de Jair Bolsonaro na área ambiental foi o desmatamento de 6,6 milhões de hectares, dos quais 99% com indícios de terem ocorrido na ilegalidade. A devastação equivaleria à destruição total de uma vez e meia o território do Estado do Rio de Janeiro. Os dados divulgados no último dia 12 pelo MapBiomas, em seu Relatório Anual de Desmatamento (Rad 2022), jogam luz sobre o imenso desafio da gestão de Lula da Silva de frear as motosserras e reverter esse cenário a bem do interesse nacional e do compromisso assumido pelo Brasil de zerar o desmatamento até 2030.

No último ano da administração Bolsonaro, quando a máquina governamental operou com concessões e benefícios em favor de sua reeleição, a leniência oficial abriu as porteiras para o desmatamento mais acelerado. Foram destruídos 2,1 milhões de hectares – sobretudo, na Amazônia e no Cerrado. Tratou-se de área 22,3% superior à desmatada em 2021 e de um terço da devastação ocorrida em todo o mandato presidencial.

Tal passivo desqualificaria a ficha de serviço de qualquer líder, mas não surpreende em se tratando do empenho de Bolsonaro em deixar a “boiada passar”. Seu governo fez irresponsável vista grossa aos apelos de setores organizados, empresariais e políticos do País em favor da proteção aos biomas e à agenda econômica cada vez mais restritiva ao comércio, ao acesso ao crédito e ao investimento para negócios maculados pelo mau desempenho ambiental.

Desde seu início, o governo Lula da Silva mostrase empenhado na reversão desse cenário, seja por convicções próprias sobre o valor da biodiversidade brasileira, seja por ambições de liderança nas negociações multilaterais sobre mudança climática, seja pelos potenciais prejuízos econômicos decorrentes da inação. A reconstrução dos órgãos ambientais de vigilância e controle, demolidos na gestão anterior, aponta seriedade nesse novo rumo, assim como o combate ao garimpo ilegal e à grilagem em terras indígenas.

As derrubadas, porém, prosseguem – e nem sempre na legalidade. Dados deste mês do Deter, programa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apontam o desmatamento de 1.986 quilômetros quadrados na Amazônia legal de janeiro a maio. Houve redução de 31%, na comparação com igual período de 2022. No Cerrado, desbravado nas últimas décadas pelo agronegócio, o quadro piorou. Foram ceifados 2.612 quilômetros quadrados, 35% a mais.

Há muito a ser feito para o Brasil chegar a 2030 com desmatamento zero – contraditoriamente, um compromisso firmado pelo governo que se empenhou na destruição ambiental. O esforço envolve a tarefa de convencer o segmento arcaico do agronegócio a parar a derrubada de árvores e investir em tecnologia para obter ganhos de produtividade, como faz o mais arrojado. Igualmente há o desafio do ataque aos garimpos ilegais e aos grileiros, hoje dominados por organizações criminosas. Não será fácil. Mas, a bem da sociedade brasileira, recuos não serão tolerados.

Justiça tributária é mais que necessária

Correio Braziliense

Está mais do que claro que, da forma como está estruturado hoje, o regime tributário brasileiro é concentrador de renda. São os desfavorecidos os que, proporcionalmente, pagam mais impostos

Com o novo arcabouço fiscal na reta final de votação, Congresso e Executivo devem concentrar todos os esforços para levar adiante a reforma tributária. Depois de 30 anos de vaivém, de debates profundos e de ótimas propostas da Câmara e do Senado, enfim, o Brasil está pronto para dar um importante salto para o futuro. Não há nenhum exagero em dizer que os ajustes no injusto sistema de impostos levarão o país a um novo e sustentado ciclo de crescimento econômico.

Todos os estudos apontam nesse sentido. O potencial de crescimento do Brasil, hoje próximo de 2% ao ano, praticamente poderá dobrar ao longo de uma década. Num país tão carente e atropelado por políticas econômicas equivocadas por diversas vezes, será alvissareiro a melhora do ambiente de negócios, o caminho mais adequado para a geração de empregos e uma melhor distribuição de renda. A sociedade brasileira não pode mais conviver com tantas desigualdades sociais.

Está mais do que claro que, da forma como está estruturado hoje, o regime tributário brasileiro é concentrador de renda. São os desfavorecidos os que, proporcionalmente, pagam mais impostos. As camadas mais privilegiadas da população conseguem, por meio de brechas na lei, passar longe das garras do Leão. Cálculos da Receita Federal apontam que os mais pobres e os trabalhadores respondem por 75% dos recursos que, anualmente, entram nos cofres do Tesouro Nacional. Isso ocorre porque a tributação pune o consumo e a renda do trabalho.

Tal informação é fundamental para guiar as discussões no Congresso, que não pode se render aos lobbies dos que sempre foram privilegiados, que praticamente nunca pagaram impostos, mas têm forte entrada entre os legisladores. A vez, agora, é dos trabalhadores, da classe média, dos mais pobres. É essa ampla camada da sociedade que deve ser a grande beneficiada pela reforma tributária. Não entender isso será um erro imperdoável do Legislativo e do Executivo, pois, ao final, todos ganharão com o incremento da produção e do consumo. Acabou o tempo de privilégios para poucos, muito poucos.

Desde que a discussão sobre a reforma tributária esquentou, alguns setores vêm gritando que pagarão mais tributos. Na verdade, o que se está propondo é um ajuste no sistema, a correção de distorções. Há segmentos com alíquotas muito baixas, o que favorece os mais ricos, e outros, como a indústria, supertaxados. Não por acaso, o Brasil viu, nas últimas duas décadas, sobretudo, o desaparecimento de fábricas, o aumento substancial do deficit comercial de produtos de alto valor agregado e a festa dos concorrentes internacionais. A boa notícia é que será possível reverter esse quadro por meio da reforma.

Historicamente, governos em primeiro ano de mandato costumam ter mais força para reunir apoio a projetos marcados por polêmicas. Os tempos atuais estão longe na normalidade. Mas, felizmente, a maioria dos que estão no poder têm compromissos com o bom senso. O Brasil está diante de uma oportunidade única de mudar de patamar, de dar a esperança de que, finalmente, depois de tantas promessas frustradas, o futuro está próximo. Ressalte-se, um futuro promissor, em que os menos favorecidos estarão no topo das prioridades e os mais ricos entenderão que passou da hora de cumprirem seus deveres, o mais simples deles, o de pagar o que devem de impostos. É justiça social.

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