domingo, 18 de junho de 2023

Elio Gaspari - De Asmodeu@trevas para Lula@gov

O Globo

Vou direto ao ponto: Se você quiser pacto comigo, eu quero o Ministério da Saúde. Por menos, não tem acerto

Lula, você nunca me viu, mas eu te vejo. O Guimarães Rosa listou alguns dos meus nomes: sou o Arrenegado, o Cão, o Coisa-Ruim.

Escrevo-lhe porque suspeito que vosmicê queira fazer um pacto comigo. Falo porque sei. Como minto muito, dou-lhe exemplos factuais, ocorridos com seus antecessores. Creia.

Em 1996, Fernando Henrique Cardoso foi prensado pelo que já se chamava de Centrão e aceitou trocar a ministra da Indústria e do Comércio, Dorothea Werneck. Não confie na palavra do Canho, ouça Fernando Henrique. Naquele dia 26 de abril ele registrou:

“Hoje foi talvez o dia mais difícil, mas o mais duro para mim. (...) Fui à casa da Dorothea. Eu tinha que ir. (...) Eu me emocionei, ela chorou, eu também. (...) Ela acha que estamos fazendo um pacto com o Diabo.”

Veja como são as coisas, usam meu nome sem saber das minhas artes. Se o Fernando Henrique queria fazer pacto comigo, nunca tratei do assunto. Conhecendo-o, não tinha garantia de que entregasse o combinado.

Anos depois, tendo saído do governo, ele disse que a presidente Dilma Rousseff ia “fazer um pacto com o demônio o tempo todo.” Acertou, ela fez o pacto com meus agentes e perdeu o cargo em 2016.

Soube que você chorou numa conversa com sua ministra do Turismo, Daniela Carneiro. Ela estava acompanhada pelo marido, Waguinho, prefeito de Belford Roxo. Saiba que são muitos os meus domínios na Baixada Fluminense. Lá tenho políticos, milicianos, policiais e, às vezes, até diretores de escolas e hospitais. Mais não digo.

Veja só, o Fernando Henrique chorou com a Dorothea Werneck, e você chorou com a Daniela do Waguinho. Essas são minhas artes.

Vou direto ao ponto: Se você quiser pacto comigo, eu quero o Ministério da Saúde. Por menos, não tem acerto.

Sou mentiroso e só engano quem pensa que é pior que eu. Vai daí que mesmo me entregando o Ministério da Saúde, não garanto que venha a cumprir o que for prometido.

Explico-lhe: o que meu pessoal lhe oferece em nome do Arrenegado é apenas uma parte do que eles e eu queremos. Firmado que você fez um pacto conosco, o resto é mais fácil.

O Fernando Henrique disse em 2015 que a senhora Rousseff fez um pacto comigo. Pode ser. Mas eu já estava trabalhando. Daqui do meio do redemoinho eu ajudo a nomear e a demitir ministros.

Nos seus dois primeiros governos, tive dois, não digo quais.

Em junho de 2013, seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, era o governador de São Paulo, e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, era prefeito da capital. Os dois estavam em Paris e haviam cantado “Trem das Onze” em um evento. Na noite do dia 13, um choque da PM interrompeu uma passeata pacífica com bombas de barulho e gás. Deu no que deu.

Como estão falando muito nos dez anos daquelas jornadas, pergunte aos dois quem mandou a PM fazer aquilo.

Fui eu.

Até logo.

P.S.: O Arthur Lira aprovou um projeto que criminaliza o que vier a ser considerado uma discriminação à espécie dos políticos e de seus familiares. De onde saiu essa ideia?

A Câmara votou a lei da carteirada

Dezesseis dias depois de a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) ter anulado a condenação do ex-deputado Eduardo Cunha, a Câmara aprovou um projeto histórico. Com tramitação relâmpago — 252 votos contra 163 —, passou um projeto de Dani Cunha (União-RJ), filha do doutor Eduardo, que criminaliza práticas que venham a ser consideradas discriminatórias da atividade pública, e a proteção estende-se aos seus familiares.

Entre outras blindagens, pelo projeto aprovado, os bancos não podem negar crédito a algumas pessoas de qualquer um dos três Poderes porque elas têm atividade pública.

O projeto blinda cerca de dez mil pessoas, parlamentares, magistrados, procuradores e dirigentes de partidos políticos e seus familiares.

Sua constitucionalidade é discutível, mas essa é uma questão que será decidida pelo Supremo Tribunal.

No século XIX, o Parlamento brasileiro travava a aplicação de uma lei que proibia o contrabando de escravizados. No XXI, a Câmara quer criar uma categoria especial de cidadãos com base em suas atividades. Existem leis que protegem os menores, os negros, as mulheres e os idosos. São todas genéricas.

Se o projeto passar pelo Senado, os dez mil formarão uma casta.

Só cinco partidos votaram em bloco contra o projeto: PSOL, PC do B, Cidadania, Novo e Rede. Juntos, somaram 16 votos.

Adiante, listam-se seis deputados que votaram a favor da blindagem e seis que votaram contra. (A lista completa está na rede, vale a pena visitá-la.)

Votaram a favor: Aécio Neves (PSDB-MG), André Fufuca (PP-MA), Antonio Doido (MDB-PA), Baleia Rossi (MDB-SP), José Guimarães (PT-CE) e Rui Falcão (PT-SP).

Votaram contra: Bia Kicis (PL-DF), Chico Alencar (PSOL-RJ), Érika Kokay (PT-DF), Kim Kataguiri (União-SP), Lídice da Mata (PSB-BA) e Tabata Amaral (PSB-SP).

O andar de cima tem suas mumunhas

Uma lei de 1831 dizia que todo negro escravizado que chegasse ao Brasil era livre, desde que prestasse serviços à Coroa por um determinado número de anos. A Coroa, por sua vez, terceirizava esses serviços, cedendo os negros a cidadãos de “probidade e inteireza”.

Colocando-se o negro para trabalhar, com um mês de seu salário pagava-se a anuidade da concessão. Foram privatizados alguns milhares de negros.

Os dois maiores políticos do Império, Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná, e Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias, receberam dezenas de negros livres. Dois grandes jornalistas daquele tempo (Justiniano José da Rocha e Firmino Rodrigues Silva) também ganharam negros.

Magistrados, barões, médicos e a turma do palácio de D. Pedro II ganharam seus lotes.

Serviço: Este assunto foi tratado pela professora Beatriz Gallotti Mamigonian no seu livro “Africanos Livres - A Abolição do Tráfico de Escravos para o Brasil”. A lista dos beneficiados pelas concessões está na rede, na sua tese de doutorado, “To be a Liberated African in Brazil: Labour and Citizenship in the Nineteenth Century” (“Africanos Livres no Brasil - Trabalho e Cidadania no século XIX”).

O andar de cima de Pindorama sabe cuidar de seus interesses.

Dois estilos

Quando era um jovem oficial, o atual comandante do Exército, general Tomás Paiva, foi ajudante de ordens do presidente Fernando Henrique. Ninguém ouviu falar dele.

Estimulado pelo estilo de seu chefe, o tenente-coronel Mauro Cid tornou-se figura carimbada.

Metia-se em tudo, até na redação de um discurso de Bolsonaro na assembleia geral das Nações Unidas. Deu no que deu.

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