Como possível explicação – ou ao menos interpretação – dessa inflexão nas condutas políticas de atores relevantes (que não vem de hoje, mas se intensificou e “normalizou” a partir das eleições de 2018), aparece o deslocamento das garantias de governabilidade do país de um circuito de relação institucional antes coordenado pelo Presidente da República para outro, controlado por maiorias parlamentares formadas com grande autonomia política perante governos. Enquanto a governabilidade (especialmente econômica) depende cada vez mais dessa coesão legislativa do que de uma interação fluente entre os poderes, as estratégias eleitorais de lideranças e partidos, ao se tornarem atividades permanentes e crescentemente prioritárias, para esses atores, passam a demandar recursos políticos e materiais provenientes de decisões de ambos os poderes, exigindo práticas de cooperação entre eles. O orçamento público é o melhor exemplar dos laços que os atam.
Acrescentarei, a esse pano de fundo, uma
reflexão sobre como análises de conjuntura podem/devem ser afetadas pela reconfiguração
sistêmica. Essas análises, para manterem pés no chão, precisam lidar com o
fato, a princípio insólito, da acentuação de poder pessoal nos dois poderes, em
pleno processo de reinstitucionalização após a liquefação da política nos anos
bolsonaristas. Falo, evidentemente, de um “duplo L” que pontifica na nova
conjuntura. De um lado, o de Lira movimenta-se entre demandas pragmáticas (individuais
e corporativas) dos seus pares, por prerrogativas e recursos públicos e pressões,
também corporativas, de agentes do PIB, dispostos a rebaixar aquelas demandas.
Nesse ir e vir, submete mais e mais o processo legislativo da Câmara a seus
desígnios imperiais. O L de Lula, por sua vez, faz do terceiro governo do
personagem uma sucessão de soluços entre compromissos com parâmetros de
governabilidade ditados pelo Legislativo e requerimentos da arena plebiscitária,
na qual seu poder pessoal se reproduz como pêndulo, conservando-se árbitro da
conveniência de mostrar, a cada ocasião particular, uma das faces desse script.
Nenhuma orientação nítida flui. Ao contrário da maioria coesa do
Legislativo, para cuja lógica eleitoral governabilidade e palanque são subprodutos
distintos da mesma política cartorial, Lula precisa usar o cartório, ritos
institucionais e discurso plebiscitário consentido pelos ritos, como meios de
manter salvo o seu cargo e ativo o seu palanque.
Na contramão dessa realidade complexa e
opaca, rica em desdobramentos possíveis, mas não ainda suficientemente
delineada, sobrevive, em análises de conjuntura, um raciocínio resiliente,
inercial, que entende o governo do país como emanação de escolhas estratégicas
do Presidente da República, enfatizando a dinâmica do Executivo como dínamo dos
processos decisórios. Por esse ângulo já não se vê bem as coisas, mas ele segue
mantido para analisar, por exemplo, o espectro da reforma ministerial. O
objetivo desde sempre atribuído à aguardada reforma é o de ampliar e estruturar
a base parlamentar governista para assegurar governabilidade através da
aprovação de matérias de interesse do governo. Mas não está claro qual é a agenda
de votações que se tem, afinal, em mira.
No plano da economia, há uma agenda do Legislativo
composta das chamadas "reformas micro econômicas", oriundas do tempo
do ex-ministro Paulo Guedes, com orientação pró-mercado. Nas atuais condições
de temperatura e pressão vigentes naquele ambiente, elas serão feitas, não
porque a composição ministerial seja essa ou aquela, mas porque é uma agenda
que já tramita no Congresso e em torno da qual há, como havia no caso do
arcabouço fiscal, consensos bem além dos marcos do antigo ou do novo governismo.
Na ponta oposta à que se situa essa agenda de persuasão figura uma de embate,
na qual pautas-bomba de costumes talvez não surjam com frequência, mas pode
entrar, por exemplo, a reforma administrativa que agrada ao PIB e embaraça a relação
do PT com parte de suas bases. Ministérios para o centrão podem arrefecer
ânimos dispostos a jogar água nos palanques petistas.
O que não se conhece é a pauta do Executivo
que a reforma ministerial viabilizaria. O ministro Haddad elevou um pouco o tom
político, na semana passada, após a vitória nas mudanças das regras do CARF e
avançou comentários sobre mudanças no Imposto de Renda, as quais seriam, do
ponto de vista do governo, um complemento socialmente progressista da reforma
tributária. Ecoa assim compromisso de campanha do Presidente. Pode ser uma
pista sobre essa agenda ainda não explicitada? O ministro da Fazenda foi
secundado hoje pelo Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, que
aventou a possibilidade de cortes de despesa se o Congresso não aprovar aumento
de receitas. Mais uma evidência de sintonia entre as duas pastas, mesmo num
momento em que a ministra Simone Tebet foi alvejada por um torpedo político
petista. Mas essa sintonia não revoga a falta de outra, entre essa pauta progressista
insinuada pelo governo e as inclinações e compromissos existentes, num
Congresso de centro-direita, com setores a princípio afetados, negativamente,
pelas cogitações que Haddad anunciou. O certo é haver controvérsia. O duvidoso
é se a articulação política do governo crê e aposta que, abrindo espaços ao centrão
no ministério, obterá, de fato, votos parlamentares para converter a pregação
em lei. Ou se essa pregação, assim como vários outros pontos de uma pauta à
esquerda, tem como endereço não exatamente a consagração legislativa e sim a
arena plebiscitária, que é a principal bússola política do presidente e um campo
de teste obrigatório para um eventual candidato seu.
A simultaneidade constante e o paralelismo
“funcional” entre as lógicas da governabilidade e da busca de popularidade
subvertem calendários concebidos em etapas estanques e são a principal novidade
que a reconfiguração sistêmica das relações entre os dois poderes governativos
acrescenta à conjuntura política, afetando estratégias de líderes e de
partidos. Traz possibilidades desses atores adotarem políticas de aliança
distintas e também simultâneas e paralelas.
Uma consequência disso é a impropriedade de
se pensar, por exemplo, a centro-direita, campo político hegemônico no
Congresso e em vias de crescer no Executivo, como se fosse um bloco coeso, tendente
a abarcar também o centro. A coesão é real no apoio à agenda de reformas
econômicas e administrativas, mas nem de longe repete-se no plano da política
interna aos poderes ou em pautas políticas setoriais.
Artur Lira tenta borrar as diferenças internas
a esse grande campo para reinar sobre o conjunto dele e se apresentar, a
interlocutores políticos e econômicos, como mais que seu representante, seu
mentor. Já Lula, o que está fazendo há sete meses é, gradual e
sistematicamente, optar por uma centro-direita mais à direita – a de Lira - em
detrimento de outra, mais ao centro do espectro político. Em outras palavras,
empoderando o centrão contra um centro alternativo ensaiado, no terreno do
Legislativo, pelo MDB e PSD, dois partidos de protagonismo relevante no Senado e
capazes de, unidos ao Republicanos e ao Podemos em bloco parlamentar na Câmara,
criarem uma alternativa ao poder pessoal de Artur Lira. Esses dois partidos sofrem,
no Executivo, um monitoramento ou mesmo bloqueio parcial de seus espaços
políticos pela influência assimétrica do PT nesse âmbito.
Lira e Lula ajudam-se mutuamente ao
procurarem realinhar o Republicanos, na contramão do governador de São Paulo. O
argumento do governo é que com isso afasta aquele partido do bolsonarismo, com
o qual Tarcísio de Freitas ainda teria laços operativos e simbólicos, no
passado e no presente. Falacioso, primeiro, porque são raros os que, no
contexto político paulista, poderiam, sem olhar para os lados, atirar a
primeira pedra no atual governador. Falacioso também porque aquilo que de fato
fazem é tentar empurrar Tarcísio de Freitas a uma guinada mais à direita para, na
sequência, ser possível demonizá-lo com mais razão. E, principalmente, tentar cortar
os elos do Republicanos com o PSD e o MDB pelo potencial que têm os três
partidos juntos de constituírem, mais adiante - a depender dos rumos do
governo, do seu desempenho eleitoral e das sucessões nas duas casas
legislativas – uma aliança política mais perene e de maior organicidade. Poderes
pessoais da dupla de atores aqui analisada não se dão bem com pares que não atuem
estritamente dentro da lógica da política líquida que pontificou sem peias
durante o governo de Bolsonaro.
A investida sobre o ministério do
Planejamento, no episódio da escolha do novo presidente do IBGE, deve ser
inserida nesse quadro mais geral. A fulanização do assunto pode servir a
interesses políticos de distintos “lados”, mas não ajuda a entender melhor o
que se passa. Do mesmo modo não ajuda à elucidação da cena comprar o hábil
discurso minimizador da ministra pelo seu valor de face. Os caroços podem
entalar quem não os avistar para mastigá-los bem, ou expeli-los, antes de deglutir
o angu.
Em condições típicas de normalidade do que
sempre foi o presidencialismo de coalizão cabe interpretar, sem dúvida, como
uma óbvia e flagrante imprudência designar uma figura de trajetória politicamente
polêmica como Marcio Pochmann para dirigir uma área tão sensível para políticas
públicas, justamente numa hora em que o ambiente econômico melhora, com a
adoção de soluções moderadas no Legislativo e de uma política de entendimento
ao centro no Executivo, levada à frente sob a liderança do ministro da Fazenda,
com a cooperação ativa da ministra do Planejamento. O fato gerador de uma quase
crise política no governo tem até cheiro forte de provocação, sabotagem, quiçá
de fogo amigo. Espantoso, pelos padrões convencionais de conduta que se espera
do Presidente num sistema assim, Lula não proteger Haddad e sua importante
aliada de tal risco numa hora dessa.
O maior problema seria a fricção política
que essa indicação potencialmente traz para o trabalho da equipe econômica, que
precisa de sossego e blindagem. Haddad e Tebet vêm tocando uma partitura comum,
internamente ao governo e em entendimento fluente com a agenda e a liderança do
Congresso. Essa agenda, por sua vez, parte de premissas e de diagnósticos bem
distintos dos pontos de vista públicos de Pochmann. Seria o caso de querer
fazer contraposição quando se tem plena noção do limite de governabilidade, no
país da política real? É até possível e talvez até se deva, a partir de um
governo com perfil de centro-esquerda que se elegeu com um discurso
esquerdista, apesar do apoio de liberais, questionar, através de políticas
públicas específicas, diagnósticos e premissas que sustentam a agenda coesa do
Congresso. Mas fazer isso no IBGE, um órgão de importância para a política
econômica e o de maior envergadura num ministério sistêmico, gerido por uma
aliada liberal, seria brincar com fogo.
Todas essas convicções razoáveis sobre a
imprudência do gesto político parecem relativizadas quando se considera o
paralelismo entre governabilidade e estratégia eleitoral que Lula parece
começar a crer que vigora no Brasil. Colocar no IBGE, como antes no BNDES, um
contraponto à lógica política da área econômica do próprio governo não afetaria
as condições de governabilidade política com que os ministros da área operam
porque essa governabilidade depende não tanto do que o presidente e vários outros ministros digam
ou façam, desde que esses apitos não alterem a atitude dos ministros da área,
de assimilação das premissas e da agenda de políticas que orienta a maioria
legislativa. É improvável que o espaço dado ao centrão de Lira altere esses
condicionantes estipulados pelo interlocutor que tem o maior poder de agenda. O
que esses novos espaços farão é dar ao governo o nada a obstar dessa maioria à
agitação e propaganda do presidente e seu governo em torno dos temas que são
caros a seu discurso político. Os termômetros da eficácia desse acordo serão,
de um lado, o centrão no ministério, de outro, a abstenção da maioria
legislativa de lançar torpedos legais contra a pauta do palanque do presidente.
Em suma, uma coisa é uma coisa, outra coisa
é outra coisa. Lula poderá sempre dizer que não faz mais por causa do Congresso
e do BC. Lira poderá continuar sendo o mandachuva que ajuda a reeleição de
deputados. E ambos compartilharão o bônus de responsáveis pelo êxito de uma
política econômica moderadamente liberal que, de resto, tranquilizará os
agentes da economia. Se a economia não corresponder aos planos aí a equação
toda fracassa e restará para o futuro o balanço sobre qual poder herdará a
parte politicamente reversível do fracasso e qual deles ficará com o mico na
mão.
Lira prepara-se para superintender a sua
sucessão, antes, durante e depois dela ocorrer. Seu limite é o da continuidade
institucional, um tempo que não se pode adivinhar. Lula prepara-se para
enfrentar o centro e a centro-direita liberal juntos em 2026. Ou num confronto
direto, se o bolsonarismo definhar, ou como uma terceira via, a incorporar por
gravidade. Quer o centrão no seu palanque para "provar", mais uma
vez, que ele e o PT são a única via para a democracia se salvar.
Se alguém disser que é cedo para falar de eleições é porque não está convencido de que o presidencialismo de coalizão se exauriu e acha que ele pode dar conta do recado das urnas ou é porque não quer que venha a público a notícia de que ele, de fato, se exauriu e a competição eleitoral entrou em moto contínuo, seguindo à deriva. Uns e outros têm suas razões, para crer ou dissimular. Compartilhei outras, que sugerem estar se formando um vácuo político em torno de duas personalidades espaçosas.
*Cientista político e professor da UFBa
Nenhum comentário:
Postar um comentário