Uma ode à democracia
Revista Veja
A incômoda lembrança dos ataques assustadores
do 8 de janeiro é um modo de evitar que a estupidez se repita
Há exato um ano, em 8 de janeiro de 2023, o
Brasil viveu um dos mais vergonhosos episódios de sua história. Depois de
quatro décadas de redemocratização do país, uma horda terrorista depredou os
edifícios dos três poderes, em Brasília. A turba — dita patriota, apoiadora do
ex-presidente Jair Bolsonaro,
mas obtusa e irresponsável — protestava contra a eleição de Lula, em pleito
evidentemente acatado pelo Legislativo e pelo Judiciário, porque assim funciona
o estado de direito. Descobriu-se, após imediata investigação, ter havido algum
grau de planejamento e tolerância das forças de segurança do Distrito Federal.
Repetiam-se, como farsa, os estragos do Capitólio promovidos pelos pares de
Donald Trump contra a escolha de Joe Biden.
A tragédia brasiliense foi um momento de triste memória, movido por cidadãos alimentados pelo ódio, o resultado mais nocivo da polarização que há pelo menos uma década emoldura o cotidiano dos brasileiros — na política, sem dúvida, mas também em outros escaninhos da sociedade, nas relações familiares, nos gostos artísticos, nas escolhas individuais. A incômoda lembrança daquela jornada assustadora é um modo de evitar que a estupidez se repita.
Naquele movimento insano, um dos alvos
prediletos foi a sede do Supremo Tribunal Federal, o STF. Poucas pessoas
personificam com tanta firmeza o órgão quanto o ministro Alexandre de Moraes,
indicado pelo ex-presidente Michel Temer. Moraes recebeu o diretor de redação
de VEJA, Mauricio Lima, para a mais completa entrevista em torno da tentativa
de golpe daquele domingo raivoso. A conversa de mais de uma hora aconteceu na
sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por
Moraes — o TSE, aliás, foi quem tornou Bolsonaro inelegível por oito anos, em
decorrência de uma reunião com embaixadores na qual o então candidato à
reeleição acusou de fraude o sistema eletrônico de votação. Moraes conta ter
sido descoberta, com sobejas confirmações, a presença de 200 homens ostentando
balaclavas e com plantas detalhadas dos prédios atacados. Diz seguir preocupado
e atento para não deixar crescer o ovo da serpente. Sabe ser fundamental manter
a vigilância, especialmente nas redes sociais, a ágora a alimentar a
destruição. Revela ter sofrido ameaças, inclusive de morte. Redobrou a
segurança da família, mas vai em frente na batalha contra o obscurantismo.
A postura de Moraes, na liderança do STF,
assim como a do Congresso e a do Executivo, de manutenção da integridade e da
força das instituições — em resposta ao horror —, também representa capítulo
extraordinário, mas positivo: o da vitalidade de uma nação forte o suficiente
para manter-se no caminho da normalidade, apesar das crises, apesar da
desigualdade social, apesar da discórdia desnecessária. Os tolos do 8 de
Janeiro estão sendo julgados e condenados pelos crimes cometidos. Vale sempre
ficar com uma das mais agudas frases do britânico Winston Churchill, proferida
em 1947, pouco depois do fim da II Guerra Mundial: “A democracia é a pior
forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido
experimentadas ao longo da história”.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de
2024, edição nº
2874
Bolsa Família falha no estímulo ao emprego
O Globo
Pesquisa constatou associação entre ampliação
do programa e menor participação na força de trabalho
Os programas de transferência de renda são
uma das maiores conquistas do Brasil neste século. Inspirado em projeto do
governo Fernando Henrique Cardoso, o Bolsa Família, lançado no primeiro mandato
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, consolidou a ideia de que os mais
pobres precisam de ajuda do Estado. Esse é um ponto pacífico. O que segue em
debate é o desenho mais adequado para o principal programa de transferência de
renda do governo federal.
É inegável que, depois da manipulação
eleitoreira que o governo Jair Bolsonaro promoveu com seu Auxílio
Brasil, o retorno do Bolsa Família com base em princípios originais
foi um avanço. Mesmo assim, do jeito como está formulado, de forma mais
abrangente que no passado, ele não mantém o foco nos mais necessitados como
seria desejável. Além disso, de acordo com um estudo divulgado recentemente,
tem desestimulado a busca por emprego.
Embora a desocupação continue em queda, a
parcela dos brasileiros em idade para trabalhar empregados ou em busca de vaga
é menor do que antes da pandemia. Em setembro, eram 62% da população em idade
ativa, dois pontos abaixo de 2019. Há uma associação estatística entre o
aumento na transferência de renda e a queda da participação na força de
trabalho, em especial em atividades na base da pirâmide social. Essa é a
principal conclusão do estudo do economista Daniel Duque, do Instituto
Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
Essa associação também foi observada noutros
países. O caso mais notório são os Estados Unidos, onde a ajuda financeira
durante a pandemia retardou a volta ao trabalho. Em consequência, faltou mão de
obra, e os salários aumentaram, contribuindo para a inflação. Por aqui, a
dinâmica também foi estabelecida por mudanças na política social. Diante da
expansão do setor de serviços com o fim da pandemia, os empregadores se viram
forçados a aumentar os salários para atrair trabalhadores de menor
qualificação. Mesmo assim, muitos não viram vantagem em deixar o programa de
transferência de renda, revela o estudo do Ibre/FGV.
No início da pandemia, os benefícios foram
corretamente expandidos, numa ação conjunta do Congresso e do Executivo para
auxiliar aqueles sem meios para trabalhar. O Auxílio Emergencial ampliou as
famílias atendidas pelo Bolsa Família e subiu o valor mínimo para R$ 400,
depois aumentado para R$ 600. No ano eleitoral, a iniciativa foi desvirtuada
ganhando caráter eleitoreiro. Com a chegada do PT ao poder, houve correções
necessárias para beneficiar famílias com crianças, mas o valor ficou no mesmo
patamar.
Hoje, as famílias que participam do Bolsa
Família recebem em média R$ 700 por mês, 50% do salário mínimo. Em 2019, eram
20%. É verdade que houve mudanças para estimular a busca do emprego. Quem
consegue trabalho não deixa de receber o benefício imediatamente e continua
cadastrado no programa. Mesmo assim, as regras de proteção preveem redução no
valor.
Tais alterações foram positivas, mas têm mais
impacto no emprego com carteira assinada. Para atingir o mercado informal, e um
contingente maior com baixa qualificação, Duque sugere que o programa fique
mais parecido com o que era antes do governo Bolsonaro. As autoridades deveriam
dar atenção à questão. O objetivo da transferência de renda deve ser erradicar
a miséria, não desestimular o emprego.
Decisões da Suprema Corte reforçam o caráter
democrático de Israel
O Globo
Em duas sentenças proferidas nesta semana, tribunal liquidou tentativa de Netanyahu de ampliar seus poderes
A Suprema Corte israelense desviou nesta
semana a atenção do país da guerra que aflige a Faixa de Gaza. Em duas
decisões, o tribunal liquidou a reforma do Judiciário que o premiê Benjamin
Netanyahu tentava promover para ampliar os poderes do Executivo
e reafirmou o caráter democrático do Estado de Israel.
A segunda decisão terá impacto político
imediato. A Corte determinou que a lei impedindo o procurador-geral de declarar
um primeiro-ministro inapto para o cargo só poderá valer depois das eleições
previstas para 2026. Com isso, mantém-se sobre Netanyahu a ameaça de condenação
nos processos por corrupção a que responde. Fracassou, portanto, a tentativa de
ele se livrar usando sua maioria parlamentar para tolher o alcance da Justiça.
A primeira decisão é, contudo, mais
relevante. Por oito votos a sete, a Corte anulou outra lei aprovada pelo
Parlamento controlado por Netanyahu, suspendendo o critério usado pelo
Judiciário há décadas para decidir se pode julgar medidas do Executivo ou de
autoridades. Conhecido como “doutrina da razoabilidade”, tal critério autoriza
os tribunais a cancelar medidas que não sejam consideradas razoáveis. Já foi
usado em diversas situações, sobretudo para garantir direitos civis num país
que não tem Constituição formal, onde cidadãos dependem de leis aprovadas no
Parlamento — as Leis Fundamentais — para as liberdades básicas.
Com base na doutrina da razoabilidade, a
Suprema Corte ordenou, em 2007, o Estado a proteger todas as salas de aula ao
alcance dos foguetes lançados da Faixa de Gaza, e não apenas aquelas que o
Ministério da Defesa julgava mais vulneráveis. Mais recentemente, ela foi
empregada para impedir a indicação de um ministro por Netanyahu, sob a
justificativa de que ele fora condenado por fraudes fiscais.
Antes de restaurar a doutrina, a Corte
decidiu por ampla maioria (12 dos 15 juízes) que, em casos excepcionais, ela
tem o poder de julgar Leis Fundamentais e de invalidá-las, desde que entrem em
choque com pilares da democracia, como a separação dos Poderes, as liberdades
civis ou o primado da lei.
Sempre haverá quem veja nessa ação do
Judiciário um avanço sobre as prerrogativas democráticas do Parlamento, formado
por representantes eleitos. Mas o Estado de Israel tem características
institucionais peculiares. Na prática, como em todo regime parlamentarista,
Executivo e Legislativo formam um Poder unívoco. A Presidência da República é
um cargo apenas cerimonial. Resta apenas o Judiciário para contrabalançar
eventuais investidas autoritárias de quem ocupa o poder.
A ex-presidente da Suprema Corte Esther Hayut proferiu nos dois casos seus últimos votos antes de se aposentar. Ela fez questão de refutar acusações de que as sentenças voltariam a dividir o país, unido pela guerra contra o Hamas. “Mesmo neste momento difícil, a Corte deve cumprir seu papel e se pronunciar sobre as questões que lhe foram trazidas”, afirmou. “Ainda mais quando dizem respeito a características essenciais da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.”
Movendo em círculos
Folha de S. Paulo
Descarbonizar veículos é certo, mas programa
de Lula mantém dependência estatal
A nova política do governo Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) para a indústria automobilística apresenta o objetivo correto do
incentivo à descarbonização, mas a sequência de iniciativas que mantiveram a
dependência desse setor em relação ao Estado inspira temores.
Em 2012, foi criado o programa conhecido como
Inovar-Auto. Embora o motivo inicial fossem as altas nas importações, dada a
valorização do real, seus propósitos eram aumento da eficiência energética dos
veículos, investimento em tecnologia e nacionalização da cadeia produtiva
—subsídios e incremento da proteção contra importados constituíam o miolo da
ação.
Em 2018, veio o Rota 2030, com objetivos
similares. Agora, nasceu o neto dessas políticas, o programa
Mobilidade Verde e Inovação, ou Mover. Criado por medida provisória
no apagar das luzes do ano passado, deve durar até 2028. Terá se passado então
uma década e meia de proteção extra para uma atividade já bastante amparada.
Além de automóveis e de autopeças, o Mover
fomenta a produção de ônibus, caminhões e outros veículos. Em cinco anos, deve
conceder cerca de R$ 19,3 bilhões em abatimentos de impostos.
Pretende-se descarbonizar o setor. Para tal
fim, não serão calculadas só as emissões de gases de efeito estufa do veículo,
mas das fontes de energia da cadeia de produção. Haverá incentivos e metas
também quanto à reciclagem do produto de fabricação nacional. Ademais, cria-se um
fundo no BNDES para financiar a "mobilidade verde".
O desconto de tributos federais será maior de
acordo com os investimentos das empresas em pesquisa. Haverá estímulo para a
instalação de fábricas no Brasil. Mais detalhes ainda serão conhecidos com a
regulamentação da lei.
A associação dos fabricantes de veículos,
Anfavea, diz que o Inovar-Auto e o Rota 2030 elevaram o padrão de qualidade, a
segurança e a eficiência energética dos veículos. Segundo o governo, as
empresas passaram a investir mais em pesquisa e desenvolvimento.
Entretanto cerca de 60 anos de proteção
contra a concorrência externa, reduções de impostos, benefícios tributários
estaduais e mais de uma década de incentivos e subsídios à inovação indicam que
mesmo esse suposto sucesso das montadoras dependeu do Estado.
Além das vendas para o Mercosul, o país quase
não exporta veículos. É incapaz de competir no mercado internacional, a
produção de cada fabricante tem pequena escala e os preços são altos.
Algo, portanto, não funciona. Se os gestores
entendem que setores como os de veículos precisam de algum estímulo, a questão
é desenhar um programa que enfim leve ao desmame dessa indústria.
Fios desencapados
Folha de S. Paulo
Guerra Israel-Hamas prolongada eleva risco de
escalada de violência na região
De todas as motivações para o Hamas lançar
seu ataque terrorista de 7 de outubro de 2023 contra Israel, disparando
violenta reação de Tel Aviv contra a Faixa de Gaza, uma das mais evidentes era
a expectativa do grupo palestino de incendiar o Oriente Médio.
Estrategicamente, era possível: a barbárie
cometida contra civis e soldados ensejaria retaliação tão pesada que atores
regionais contrários ao Estado judeu abririam novas frentes, ameaçando a
própria existência de Israel.
Não deu certo de forma imediata, mas o
prolongamento do conflito está expondo um cipoal de fios desencapados às
intempéries inerentes à volatilidade regional.
O Hamas é um dos movimentos locais apoiados
pelo Irã, país que tem na obliteração de Israel e no confronto permanente com
os Estados Unidos o foco central de sua agenda. Ao longo dos anos, Teerã
selecionou prepostos de diversas colorações para evitar ação direta.
O mais poderoso deles é o Hezbollah libanês.
Desde o começo da atual guerra, o temor principal de Israel era um envolvimento
total dessa agremiação. Isso ocorreu só na retórica: na prática, ela manteve um
comedido atrito na já contestada fronteira entre os dois países.
O maior
barulho veio de quem não se esperava, os houthis do Iêmen, apoiados
desde 2014 pelo Irã numa guerra civil. A disrupção devido a ataques e
sequestros no mar Vermelho, que concentra 15% do comércio por navios no mundo,
tornou-se um problema real.
Grandes empresas desviaram embarcações,
preços de fretes e do petróleo subiram, e os EUA tiveram de montar uma
força-tarefa.
A essa situação temerária somou-se, nesta
semana, a primeira grande ação de Israel fora de suas fronteiras na guerra, o
assassinato de um líder do Hamas em Beirute. Logo depois, os EUA mataram em
Bagdá um expoente de um grupo pró-Irã, responsável por ataques a bases
americanas no Iraque.
Para adicionar tensão, o próprio Irã sofreu o
maior atentado desde a implantação da teocracia em 1979. Ainda
que assumido por um inimigo interno, o grupo terrorista Estado Islâmico, a ação
exacerbou a percepção de risco.
Até aqui, o formidável posicionamento militar de Washington e os temores do impacto de uma guerra maior dissuadiram Teerã e seus clientes. Mas o risco de uma escalada regional de violência cresce a cada dia que Israel estende, sem um plano de saída, sua guerra.
As batalhas de Haddad
O Estado de S. Paulo
O ministro acertadamente chamou o PT para a briga e convocou o único nome capaz de arbitrar o conflito entre a agenda econômica responsável e a gastança defendida pelo partido
Se soube escolher bem as batalhas de 2023
para colher vitórias em sua agenda econômica, o ministro Fernando Haddad
iniciou o ano reafirmando sua capacidade de enfrentar as brigas certas e com
alvo definido: a artilharia do PT. Em entrevista concedida ao jornal O Globo há
alguns dias, Haddad subiu o tom em público em relação ao comissariado petista
que o atacou desde o primeiro dia de sua gestão. Escancarou a contradição da
legenda depois de muitos embates com a Casa Civil ao longo do ano passado e do
fogo amigo, promovido durante meses por parlamentares e pela presidente do
partido, Gleisi Hoffmann, até culminar com a resolução do Diretório Nacional do
PT que chamou a política fiscal de “austericídio”. E convocou para mediar o
conflito o único nome capaz de arbitrá-lo.
Assim disse o ministro, em referência à
capacidade de alguns de seus companheiros de enxergar os mesmos fatos com duas
lentes (numa, celebram-se os resultados positivos da economia em 2023,
creditando-os a Lula; noutra, ignora-se que os mesmos resultados se devem em
grande medida aos diques de contenção impostos pela equipe econômica com o
apoio do Congresso): “É curioso ver os cards que estão sendo divulgados pelos
meus críticos sobre a economia. (...) O meu nome não aparece. O que aparece é
assim: ‘A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula!’ E o Haddad é um
austericida. Então, ou está tudo errado ou está tudo certo. Tem uma questão que
precisa ser resolvida, que não sou eu que preciso resolver. Não dá para
celebrar Bolsa, juros, câmbio, emprego, risco-país, PIB que passou o Canadá
(...) e simultaneamente ter a resolução que fala ‘está tudo errado, tem que
mudar tudo’”.
Haddad não citou nomes nem precisava: além de
Gleisi Hoffmann, principal artífice do documento crítico do PT aprovado em
dezembro, Lindbergh Farias e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, manifestaram-se
nas redes sociais exatamente no tom apontado por Haddad. Só no limitado, porém
barulhento universo das cabeças petistas mais delirantes é possível celebrar os
resultados macroeconômicos e ao mesmo tempo pregar a mudança da agenda
econômica, no habitual esforço do partido para desmoralizar sistemas de metas de
superávit primário e pregar desequilíbrios fiscais segundo a ótica de que
“gasto é vida”.
Houve quem apontasse um risco considerável
para o ministro uma declaração como essa. Como se sabe, Lula não é do tipo que
gosta de ser cobrado publicamente. Mas quem conhece as dinâmicas lulopetistas
sabe também que uma declaração assim não surgiria sem o aval do chefe. A
cosmologia do presidente costuma incentivar divisões e contradições até o
limite do irrazoável. É sua fórmula para, internamente, incendiar a militância
e, externamente, emitir sinais diferentes para públicos distintos e aguardar os
melhores resultados (sobretudo para ele próprio) – até o seu arbítrio final.
Difícil acreditar que Lula não tenha sabido previamente da disposição de Haddad
para a briga, assim como os ataques corriqueiros promovidos por Gleisi, Rui
& Cia. não tenham também a sua anuência.
O risco de Haddad é, portanto, calculado. Mas
quem corre o maior risco em 2024 é mesmo o Brasil. Se o ministro da Fazenda
contribuiu até aqui num debate mais racional, no alinhamento de agendas com as
lideranças do Congresso a fim de aprovar projetos cruciais, e até mesmo na
mediação das conflituosas declarações presidenciais dirigidas ao Banco Central,
o ministro sabe que há um longo percurso a trilhar. A desidratação ao longo da
tramitação legislativa tornou mais difícil alcançar as ambiciosas metas calculadas
pela equipe econômica. E o mais grave: anos eleitorais costumam estimular a
atração dos políticos pela gastança, ajudando a irrigar os feitos de obras e
resultados com potencial eleitoral de curto prazo. A começar pelo próprio Lula,
hoje parcialmente tisnado pelo viés de baixa em sua popularidade.
Haddad sabe das tormentas que virão em 2024 e
precisará mais do que nunca do apoio do presidente para enfrentá-las. A dúvida
é qual Lula responderá ao seu chamado: aquele que chancelou algumas de suas
principais contendas ou o devorador de orçamentos em nome dos dividendos
eleitorais de curto prazo?
Falatório não reduz criminalidade
O Estado de S. Paulo
Com incurável mania de grandeza e confusão
entre comunicação pública e governamental, o PT combate um problema real e uma
insatisfação da população com campanha publicitária
Eis uma certeza nos métodos de gestão
lulopetistas: resultados modestos em áreas centrais, dificuldades em programas
governamentais, questionamentos da população, tudo isso se resolve com uma boa
campanha publicitária. Nada de dar prioridade ao necessário ajuste, a partir de
métricas e avaliação das políticas implementadas. Nada de fazer uma correção
incremental de rumos, algo natural na boa gestão pública. Nada de concentrar
recursos para campanhas de utilidade pública e prestação de serviços. A bala de
prata petista, mais eficiente segundo tal lógica, é a chamada “disputa de
narrativa”, capaz de difundir o discurso triunfalista, governista e partidário.
A nova evidência dessa deformação de
propósitos é a informação de que uma das primeiras campanhas de 2024 será
destinada à segurança pública. Com o mote “Brasil unido contra o crime”, o
governo promete exaltar suas ações no combate ao crime organizado e às
milícias. As cabeças pensantes do Palácio do Planalto e suas agências de
publicidade tentarão mostrar ao distinto público o que vêm fazendo a Polícia
Federal, a Polícia Rodoviária Federal e as Forças Armadas nas fronteiras,
portos e aeroportos, e o combate aos crimes na internet, à violência contra as
mulheres e à pedofilia, além de celebrar as parcerias firmadas com Estados e
municípios.
Há duas peças que estão no ar e têm muito a
ver com a prometida campanha da segurança pública: uma sobre a cultura de paz
nas escolas e outra sobre o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
adotada pelo governo federal para reforçar a fiscalização em portos e
aeroportos do País. O governo poderia concentrar seus esforços em tratar os
temas como informação de interesse público, ajudando a população a promover uma
cultura de paz nas escolas, por exemplo, ou entender melhor a natureza da ação
da chamada GLO. Mas com sua incurável mania de grandeza, especialmente diante
de resultados nem tão celebráveis assim, o presidente Lula da Silva e seus
bajuladores acham insuficiente. É preciso mais.
A escolha do tema é providencial. Em
dezembro, pesquisa da Quaest/UFMG mostrou que a sensação de insegurança havia
crescido. Oito em cada dez brasileiros enxergaram agravamento da violência em
2023. A mesma fatia (81%) acha que a segurança pública e o crime organizado são
problemas nacionais, enquanto 83% consideram que as facções criminosas têm
ganhado força. Mais: 43% acham que Lula vai melhor do que o antecessor; 43%
consideram que seu desempenho é pior. Também em dezembro, o Datafolha mostrou a
segurança pública como o segundo principal problema apontado pela população.
Embora seja prerrogativa concentrada nos
governos estaduais, a segurança pública divide a conta entre governadores e o
presidente. E, para além das percepções, o governo federal tem seu papel
fundamental de indução das políticas dos Estados e do direcionamento dos
recursos distribuídos no Plano Nacional de Segurança Pública. O que se viu no
primeiro ano, porém, foi a soma de algumas boas iniciativas com muita espuma
retórica e lacradora, um estado de campanha permanente na mídia e nas redes
sociais que contamina as ações num terreno em que a técnica, as evidências e a
despolitização devem prevalecer. Para agravar, a iminente saída do ministro
Flávio Dino para o STF e o esforço um tanto constrangedor do seu secretário
executivo, Ricardo Capelli, para se manter no cargo geram mais ações erráticas.
Para reagir a esses problemas, o governo se
protege com seu habitual desvio de entendimento sobre o papel da comunicação
pública. Com campanha publicitária ou uso desmedido do aparelho estatal,
sobretudo a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), prevalecem narrativas fiéis à
visão de mundo do PT e seus aliados. “Pública”, no caso, resultaria em algo
menos partidário, menos governista e mais independente. Evidentemente tal
promessa nunca se cumpriu. Nem com Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer ou Jair
Bolsonaro – em todos, em maior ou menor grau, a balança editorial pendeu
invariavelmente para os pontos de vista convenientes ao governo de ocasião. À
esquerda ou à direita, o dano é o mesmo: uma comunicação pública que se
confunde com a governamental e se converte num megafone de adulação de
autoridades e projetos partidários.
O outro lado do recorde da balança
O Estado de S. Paulo
Saldo de quase US$ 100 bi reflete tanto a
força do agro quanto a paralisia industrial
O recorde histórico da balança comercial em
2023, de US$ 98,8 bilhões, é uma excelente notícia que embute também um lado
bem ruim. O destaque positivo foi, sem dúvida, o aumento surpreendente do
volume de grãos exportados pelo Brasil, que garantiu o ótimo saldo financeiro a
despeito da queda de valor das commodities agrícolas. O ruim foi a queda das
importações, que, na economia nacional, caminha de mãos dadas com a taxa de
investimento. Ou seja, quando as compras no exterior caem, é sinal de que pouco
se está investindo por aqui.
Os dados da Secretaria de Comércio Exterior
do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) mostram
o crescimento de 60,6% do saldo da balança em 2023. Mas, nessa aritmética, a
queda de 11,7% das importações pesou mais do que o aumento de 1,7% das
exportações. Levando em conta que, no ano anterior, o desempenho de ambos havia
sido muito positivo, é possível entender a relação. As compras do exterior
registraram aumento de 24,2% em 2022; e as vendas, de 19%. O resultado, naquele
ano, foi de estabilidade no saldo comercial, com avanço de apenas 0,2% ante
2021.
Essa batelada de números é necessária para
confirmar duas constatações básicas. A primeira é que o setor agropecuário foi,
de forma incontestável, o principal suporte da economia brasileira em 2023.
Produções recordes das principais culturas, como soja, algodão e milho, levaram
ao aumento expressivo das exportações. As estimativas para o total do ano
indicam avanço de 25% no volume de vendas da agropecuária.
A segunda é que a paralisia da indústria de
transformação, principal importador nacional, fica ratificada pela queda das
compras externas. Como bem diz o nome, essa indústria transforma
matérias-primas em produtos intermediários, como o aço, ou bens de consumo
final. Quando a atividade vai bem, a economia geral está aquecida. É exatamente
o que faltou em 2023, apesar das inúmeras promessas do governo Lula da Silva
sobre um plano de reativação industrial.
O calendário de 2024, ano de eleições
municipais, prevê um grande esforço do governo para rodar as obras do “novo
PAC”. Num cenário como o atual, essa indução pode representar um perigo em
dobro, por não espelhar a realidade. O investimento da iniciativa privada deve
vir do aumento natural da demanda e da melhoria do crédito. De nada adianta
forçar um crescimento artificial – consequência do impulso do governo a seu
cronograma de obras – que não se sustente a médio e longo prazos.
Hoje é impossível captar as tendências da balança para 2024 por causa de diversos aspectos, inclusive no agro, estrela do ano passado. Castigada no fim de 2023 por questões climáticas, a queda na produção de soja é certa, dizem especialistas. A dúvida é de quanto será. O comportamento internacional do petróleo, outro item de peso na pauta brasileira, é uma total incógnita, assim como o desempenho de parceiros importantes, como China e Argentina. Uma reação industrial poderia amparar não apenas o comércio, como toda a economia – se fosse essa uma prioridade real do governo.
Paz e respeito por um Brasil melhor
Correio Braziliense
Em 8 de janeiro de 2023, incitados pelo ódio
e ardente anseio de ressuscitar os piores tempos da República, centenas de
brasileiros, capitaneados pelos contrários à democracia, tentaram um golpe de
Estado. Invadiram a Esplanada dos Ministérios e vandalizaram as sedes dos Três
Poderes
Em 31 de março de 1964 — 60 anos atrás —, o
Brasil mergulhou na ditadura militar. Por mais de duas décadas, prevaleceu o
obscurantismo. O país perdeu o viço e o brilho do azul, do verde e do amarelo,
e passou a vivenciar o luto, a amargura e uma tristeza profunda. Faltava-lhe
liberdade e sobrava violência aos opositores do Estado de opressão. O estadista
britânico Winston Churchill, morto em 1965, foi taxativo: "A democracia é
o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela".
Em 8 de janeiro de 2023, incitados pelo ódio
e ardente anseio de ressuscitar os piores tempos da República, centenas de
brasileiros, capitaneados pelos contrários à democracia, tentaram um golpe de
Estado. Invadiram a Esplanada dos Ministérios e vandalizaram as sedes dos Três
Poderes — Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal.
Estavam certos de que teriam o apoio das Forças Armadas e, assim, conseguiriam
esgarçar a democracia. Dessa vez, não tiveram a plena anuência dos militares, das
igrejas e muito menos da maioria dos brasileiros, que desfrutam das liberdades
e de direitos cidadãos recuperados há 35 anos e amalgamados pela Constituição
de 1988. A investida brutal de abolição da democracia foi frustrada.
Um ano depois da tentativa de golpe, o Brasil
ainda vive dividido. Mas é preciso cicatrizar as feridas dos antidemocratas e
defensores da perenidade dos valores civilizatórios que tornaram a Constituição
de 1988 uma Carta Cidadã, como foi batizada pelo então deputado Ulysses
Guimarães. A Lei Maior impactou a sociedade que, na época, também estava
dividida. O bom senso, o respeito e a convicção de que o regime anterior era
nocivo prevaleceram. Sem saber, eles seguiram o conceito do jurista Ayres
Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, explicitado em
entrevista ao Correio Braziliense (31/12/2023): "Democracia é o regime que
mais incentiva a formação de consensos".
Os constituintes dos mais diferentes matizes
ideológicos abriram mão de seus interesses pessoais e de grupos em favor da
reconstrução de um Brasil democrático, respeitoso, carente de justiça social e
econômica. Reconheceram a importância da igualdade ante a diversidade étnica,
de gênero, de origem, religiosa, política — elementos que sempre deram
singularidade ao perfil do país, entre todas as nações. Admitiram, ainda que
inconscientemente, que "fora da democracia só existe uma coisa: a barbárie",
como afirmou o ministro Ayres Britto.
A incivilidade não cabe no Brasil do século
21, mesmo com todas as suas mazelas sociais e econômicas. As deficiências
impõem aos poderes republicanos e a todas as forças vivas da sociedade
encontrar soluções para romper as barreiras ao desenvolvimento econômico, a
mais igualdade e equidade. Para isso, é essencial que os Três Poderes,
respeitados os limites de sua independência, sejam harmônicos no enfrentamento
dos desafios colocados à nação. As divergências de qualquer natureza, sobretudo
as políticas e ideológicas, não podem instigar a divisão violenta, que leva os
cidadãos aos atos extremos.
Espera-se que o trágico e vergonhoso episódio de 8 de janeiro de 2023 jamais seja repetido. Cabe ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário expressar, por meio de exemplos, a repulsa aos valores antidemocráticos, aspirando do ar o ódio que contamina a atmosfera do país. Paz, harmonia e empenho incansável na construção de um Brasil melhor são tudo que a sociedade brasileira espera dos que ocupam os Poderes da República.
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