sábado, 6 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Uma ode à democracia

Revista Veja

A incômoda lembrança dos ataques assustadores do 8 de janeiro é um modo de evitar que a estupidez se repita

Há exato um ano, em 8 de janeiro de 2023, o Brasil viveu um dos mais vergonhosos episódios de sua história. Depois de quatro décadas de redemocratização do país, uma horda terrorista depredou os edifícios dos três poderes, em Brasília. A turba — dita patriota, apoiadora do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas obtusa e irresponsável — protestava contra a eleição de Lula, em pleito evidentemente acatado pelo Legislativo e pelo Judiciário, porque assim funciona o estado de direito. Descobriu-se, após imediata investigação, ter havido algum grau de planejamento e tolerância das forças de segurança do Distrito Federal. Repetiam-se, como farsa, os estragos do Capitólio promovidos pelos pares de Donald Trump contra a escolha de Joe Biden.

A tragédia brasiliense foi um momento de triste memória, movido por cidadãos alimentados pelo ódio, o resultado mais nocivo da polarização que há pelo menos uma década emoldura o cotidiano dos brasileiros — na política, sem dúvida, mas também em outros escaninhos da sociedade, nas relações familiares, nos gostos artísticos, nas escolhas individuais. A incômoda lembrança daquela jornada assustadora é um modo de evitar que a estupidez se repita.

Naquele movimento insano, um dos alvos prediletos foi a sede do Supremo Tribunal Federal, o STF. Poucas pessoas personificam com tanta firmeza o órgão quanto o ministro Alexandre de Moraes, indicado pelo ex-presidente Michel Temer. Moraes recebeu o diretor de redação de VEJA, Mauricio Lima, para a mais completa entrevista em torno da tentativa de golpe daquele domingo raivoso. A conversa de mais de uma hora aconteceu na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por Moraes — o TSE, aliás, foi quem tornou Bolsonaro inelegível por oito anos, em decorrência de uma reunião com embaixadores na qual o então candidato à reeleição acusou de fraude o sistema eletrônico de votação. Moraes conta ter sido descoberta, com sobejas confirmações, a presença de 200 homens ostentando balaclavas e com plantas detalhadas dos prédios atacados. Diz seguir preocupado e atento para não deixar crescer o ovo da serpente. Sabe ser fundamental manter a vigilância, especialmente nas redes sociais, a ágora a alimentar a destruição. Revela ter sofrido ameaças, inclusive de morte. Redobrou a segurança da família, mas vai em frente na batalha contra o obscurantismo.

A postura de Moraes, na liderança do STF, assim como a do Congresso e a do Executivo, de manutenção da integridade e da força das instituições — em resposta ao horror —, também representa capítulo extraordinário, mas positivo: o da vitalidade de uma nação forte o suficiente para manter-se no caminho da normalidade, apesar das crises, apesar da desigualdade social, apesar da discórdia desnecessária. Os tolos do 8 de Janeiro estão sendo julgados e condenados pelos crimes cometidos. Vale sempre ficar com uma das mais agudas frases do britânico Winston Churchill, proferida em 1947, pouco depois do fim da II Guerra Mundial: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história”.

Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874

Bolsa Família falha no estímulo ao emprego

O Globo

Pesquisa constatou associação entre ampliação do programa e menor participação na força de trabalho

Os programas de transferência de renda são uma das maiores conquistas do Brasil neste século. Inspirado em projeto do governo Fernando Henrique Cardoso, o Bolsa Família, lançado no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, consolidou a ideia de que os mais pobres precisam de ajuda do Estado. Esse é um ponto pacífico. O que segue em debate é o desenho mais adequado para o principal programa de transferência de renda do governo federal.

É inegável que, depois da manipulação eleitoreira que o governo Jair Bolsonaro promoveu com seu Auxílio Brasil, o retorno do Bolsa Família com base em princípios originais foi um avanço. Mesmo assim, do jeito como está formulado, de forma mais abrangente que no passado, ele não mantém o foco nos mais necessitados como seria desejável. Além disso, de acordo com um estudo divulgado recentemente, tem desestimulado a busca por emprego.

Embora a desocupação continue em queda, a parcela dos brasileiros em idade para trabalhar empregados ou em busca de vaga é menor do que antes da pandemia. Em setembro, eram 62% da população em idade ativa, dois pontos abaixo de 2019. Há uma associação estatística entre o aumento na transferência de renda e a queda da participação na força de trabalho, em especial em atividades na base da pirâmide social. Essa é a principal conclusão do estudo do economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

Essa associação também foi observada noutros países. O caso mais notório são os Estados Unidos, onde a ajuda financeira durante a pandemia retardou a volta ao trabalho. Em consequência, faltou mão de obra, e os salários aumentaram, contribuindo para a inflação. Por aqui, a dinâmica também foi estabelecida por mudanças na política social. Diante da expansão do setor de serviços com o fim da pandemia, os empregadores se viram forçados a aumentar os salários para atrair trabalhadores de menor qualificação. Mesmo assim, muitos não viram vantagem em deixar o programa de transferência de renda, revela o estudo do Ibre/FGV.

No início da pandemia, os benefícios foram corretamente expandidos, numa ação conjunta do Congresso e do Executivo para auxiliar aqueles sem meios para trabalhar. O Auxílio Emergencial ampliou as famílias atendidas pelo Bolsa Família e subiu o valor mínimo para R$ 400, depois aumentado para R$ 600. No ano eleitoral, a iniciativa foi desvirtuada ganhando caráter eleitoreiro. Com a chegada do PT ao poder, houve correções necessárias para beneficiar famílias com crianças, mas o valor ficou no mesmo patamar.

Hoje, as famílias que participam do Bolsa Família recebem em média R$ 700 por mês, 50% do salário mínimo. Em 2019, eram 20%. É verdade que houve mudanças para estimular a busca do emprego. Quem consegue trabalho não deixa de receber o benefício imediatamente e continua cadastrado no programa. Mesmo assim, as regras de proteção preveem redução no valor.

Tais alterações foram positivas, mas têm mais impacto no emprego com carteira assinada. Para atingir o mercado informal, e um contingente maior com baixa qualificação, Duque sugere que o programa fique mais parecido com o que era antes do governo Bolsonaro. As autoridades deveriam dar atenção à questão. O objetivo da transferência de renda deve ser erradicar a miséria, não desestimular o emprego.

Decisões da Suprema Corte reforçam o caráter democrático de Israel

O Globo

Em duas sentenças proferidas nesta semana, tribunal liquidou tentativa de Netanyahu de ampliar seus poderes

A Suprema Corte israelense desviou nesta semana a atenção do país da guerra que aflige a Faixa de Gaza. Em duas decisões, o tribunal liquidou a reforma do Judiciário que o premiê Benjamin Netanyahu tentava promover para ampliar os poderes do Executivo e reafirmou o caráter democrático do Estado de Israel.

A segunda decisão terá impacto político imediato. A Corte determinou que a lei impedindo o procurador-geral de declarar um primeiro-ministro inapto para o cargo só poderá valer depois das eleições previstas para 2026. Com isso, mantém-se sobre Netanyahu a ameaça de condenação nos processos por corrupção a que responde. Fracassou, portanto, a tentativa de ele se livrar usando sua maioria parlamentar para tolher o alcance da Justiça.

A primeira decisão é, contudo, mais relevante. Por oito votos a sete, a Corte anulou outra lei aprovada pelo Parlamento controlado por Netanyahu, suspendendo o critério usado pelo Judiciário há décadas para decidir se pode julgar medidas do Executivo ou de autoridades. Conhecido como “doutrina da razoabilidade”, tal critério autoriza os tribunais a cancelar medidas que não sejam consideradas razoáveis. Já foi usado em diversas situações, sobretudo para garantir direitos civis num país que não tem Constituição formal, onde cidadãos dependem de leis aprovadas no Parlamento — as Leis Fundamentais — para as liberdades básicas.

Com base na doutrina da razoabilidade, a Suprema Corte ordenou, em 2007, o Estado a proteger todas as salas de aula ao alcance dos foguetes lançados da Faixa de Gaza, e não apenas aquelas que o Ministério da Defesa julgava mais vulneráveis. Mais recentemente, ela foi empregada para impedir a indicação de um ministro por Netanyahu, sob a justificativa de que ele fora condenado por fraudes fiscais.

Antes de restaurar a doutrina, a Corte decidiu por ampla maioria (12 dos 15 juízes) que, em casos excepcionais, ela tem o poder de julgar Leis Fundamentais e de invalidá-las, desde que entrem em choque com pilares da democracia, como a separação dos Poderes, as liberdades civis ou o primado da lei.

Sempre haverá quem veja nessa ação do Judiciário um avanço sobre as prerrogativas democráticas do Parlamento, formado por representantes eleitos. Mas o Estado de Israel tem características institucionais peculiares. Na prática, como em todo regime parlamentarista, Executivo e Legislativo formam um Poder unívoco. A Presidência da República é um cargo apenas cerimonial. Resta apenas o Judiciário para contrabalançar eventuais investidas autoritárias de quem ocupa o poder.

A ex-presidente da Suprema Corte Esther Hayut proferiu nos dois casos seus últimos votos antes de se aposentar. Ela fez questão de refutar acusações de que as sentenças voltariam a dividir o país, unido pela guerra contra o Hamas. “Mesmo neste momento difícil, a Corte deve cumprir seu papel e se pronunciar sobre as questões que lhe foram trazidas”, afirmou. “Ainda mais quando dizem respeito a características essenciais da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.”

Movendo em círculos

Folha de S. Paulo

Descarbonizar veículos é certo, mas programa de Lula mantém dependência estatal

A nova política do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a indústria automobilística apresenta o objetivo correto do incentivo à descarbonização, mas a sequência de iniciativas que mantiveram a dependência desse setor em relação ao Estado inspira temores.

Em 2012, foi criado o programa conhecido como Inovar-Auto. Embora o motivo inicial fossem as altas nas importações, dada a valorização do real, seus propósitos eram aumento da eficiência energética dos veículos, investimento em tecnologia e nacionalização da cadeia produtiva —subsídios e incremento da proteção contra importados constituíam o miolo da ação.

Em 2018, veio o Rota 2030, com objetivos similares. Agora, nasceu o neto dessas políticas, o programa Mobilidade Verde e Inovação, ou Mover. Criado por medida provisória no apagar das luzes do ano passado, deve durar até 2028. Terá se passado então uma década e meia de proteção extra para uma atividade já bastante amparada.

Além de automóveis e de autopeças, o Mover fomenta a produção de ônibus, caminhões e outros veículos. Em cinco anos, deve conceder cerca de R$ 19,3 bilhões em abatimentos de impostos.

Pretende-se descarbonizar o setor. Para tal fim, não serão calculadas só as emissões de gases de efeito estufa do veículo, mas das fontes de energia da cadeia de produção. Haverá incentivos e metas também quanto à reciclagem do produto de fabricação nacional. Ademais, cria-se um fundo no BNDES para financiar a "mobilidade verde".

O desconto de tributos federais será maior de acordo com os investimentos das empresas em pesquisa. Haverá estímulo para a instalação de fábricas no Brasil. Mais detalhes ainda serão conhecidos com a regulamentação da lei.

A associação dos fabricantes de veículos, Anfavea, diz que o Inovar-Auto e o Rota 2030 elevaram o padrão de qualidade, a segurança e a eficiência energética dos veículos. Segundo o governo, as empresas passaram a investir mais em pesquisa e desenvolvimento.

Entretanto cerca de 60 anos de proteção contra a concorrência externa, reduções de impostos, benefícios tributários estaduais e mais de uma década de incentivos e subsídios à inovação indicam que mesmo esse suposto sucesso das montadoras dependeu do Estado.

Além das vendas para o Mercosul, o país quase não exporta veículos. É incapaz de competir no mercado internacional, a produção de cada fabricante tem pequena escala e os preços são altos.

Algo, portanto, não funciona. Se os gestores entendem que setores como os de veículos precisam de algum estímulo, a questão é desenhar um programa que enfim leve ao desmame dessa indústria.

Fios desencapados

Folha de S. Paulo

Guerra Israel-Hamas prolongada eleva risco de escalada de violência na região

De todas as motivações para o Hamas lançar seu ataque terrorista de 7 de outubro de 2023 contra Israel, disparando violenta reação de Tel Aviv contra a Faixa de Gaza, uma das mais evidentes era a expectativa do grupo palestino de incendiar o Oriente Médio.

Estrategicamente, era possível: a barbárie cometida contra civis e soldados ensejaria retaliação tão pesada que atores regionais contrários ao Estado judeu abririam novas frentes, ameaçando a própria existência de Israel.

Não deu certo de forma imediata, mas o prolongamento do conflito está expondo um cipoal de fios desencapados às intempéries inerentes à volatilidade regional.

O Hamas é um dos movimentos locais apoiados pelo Irã, país que tem na obliteração de Israel e no confronto permanente com os Estados Unidos o foco central de sua agenda. Ao longo dos anos, Teerã selecionou prepostos de diversas colorações para evitar ação direta.

O mais poderoso deles é o Hezbollah libanês. Desde o começo da atual guerra, o temor principal de Israel era um envolvimento total dessa agremiação. Isso ocorreu só na retórica: na prática, ela manteve um comedido atrito na já contestada fronteira entre os dois países.

O maior barulho veio de quem não se esperava, os houthis do Iêmen, apoiados desde 2014 pelo Irã numa guerra civil. A disrupção devido a ataques e sequestros no mar Vermelho, que concentra 15% do comércio por navios no mundo, tornou-se um problema real.

Grandes empresas desviaram embarcações, preços de fretes e do petróleo subiram, e os EUA tiveram de montar uma força-tarefa.

A essa situação temerária somou-se, nesta semana, a primeira grande ação de Israel fora de suas fronteiras na guerra, o assassinato de um líder do Hamas em Beirute. Logo depois, os EUA mataram em Bagdá um expoente de um grupo pró-Irã, responsável por ataques a bases americanas no Iraque.

Para adicionar tensão, o próprio Irã sofreu o maior atentado desde a implantação da teocracia em 1979. Ainda que assumido por um inimigo interno, o grupo terrorista Estado Islâmico, a ação exacerbou a percepção de risco.

Até aqui, o formidável posicionamento militar de Washington e os temores do impacto de uma guerra maior dissuadiram Teerã e seus clientes. Mas o risco de uma escalada regional de violência cresce a cada dia que Israel estende, sem um plano de saída, sua guerra.

As batalhas de Haddad

O Estado de S. Paulo

O ministro acertadamente chamou o PT para a briga e convocou o único nome capaz de arbitrar o conflito entre a agenda econômica responsável e a gastança defendida pelo partido

Se soube escolher bem as batalhas de 2023 para colher vitórias em sua agenda econômica, o ministro Fernando Haddad iniciou o ano reafirmando sua capacidade de enfrentar as brigas certas e com alvo definido: a artilharia do PT. Em entrevista concedida ao jornal O Globo há alguns dias, Haddad subiu o tom em público em relação ao comissariado petista que o atacou desde o primeiro dia de sua gestão. Escancarou a contradição da legenda depois de muitos embates com a Casa Civil ao longo do ano passado e do fogo amigo, promovido durante meses por parlamentares e pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, até culminar com a resolução do Diretório Nacional do PT que chamou a política fiscal de “austericídio”. E convocou para mediar o conflito o único nome capaz de arbitrá-lo.

Assim disse o ministro, em referência à capacidade de alguns de seus companheiros de enxergar os mesmos fatos com duas lentes (numa, celebram-se os resultados positivos da economia em 2023, creditando-os a Lula; noutra, ignora-se que os mesmos resultados se devem em grande medida aos diques de contenção impostos pela equipe econômica com o apoio do Congresso): “É curioso ver os cards que estão sendo divulgados pelos meus críticos sobre a economia. (...) O meu nome não aparece. O que aparece é assim: ‘A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula!’ E o Haddad é um austericida. Então, ou está tudo errado ou está tudo certo. Tem uma questão que precisa ser resolvida, que não sou eu que preciso resolver. Não dá para celebrar Bolsa, juros, câmbio, emprego, risco-país, PIB que passou o Canadá (...) e simultaneamente ter a resolução que fala ‘está tudo errado, tem que mudar tudo’”.

Haddad não citou nomes nem precisava: além de Gleisi Hoffmann, principal artífice do documento crítico do PT aprovado em dezembro, Lindbergh Farias e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, manifestaram-se nas redes sociais exatamente no tom apontado por Haddad. Só no limitado, porém barulhento universo das cabeças petistas mais delirantes é possível celebrar os resultados macroeconômicos e ao mesmo tempo pregar a mudança da agenda econômica, no habitual esforço do partido para desmoralizar sistemas de metas de superávit primário e pregar desequilíbrios fiscais segundo a ótica de que “gasto é vida”.

Houve quem apontasse um risco considerável para o ministro uma declaração como essa. Como se sabe, Lula não é do tipo que gosta de ser cobrado publicamente. Mas quem conhece as dinâmicas lulopetistas sabe também que uma declaração assim não surgiria sem o aval do chefe. A cosmologia do presidente costuma incentivar divisões e contradições até o limite do irrazoável. É sua fórmula para, internamente, incendiar a militância e, externamente, emitir sinais diferentes para públicos distintos e aguardar os melhores resultados (sobretudo para ele próprio) – até o seu arbítrio final. Difícil acreditar que Lula não tenha sabido previamente da disposição de Haddad para a briga, assim como os ataques corriqueiros promovidos por Gleisi, Rui & Cia. não tenham também a sua anuência.

O risco de Haddad é, portanto, calculado. Mas quem corre o maior risco em 2024 é mesmo o Brasil. Se o ministro da Fazenda contribuiu até aqui num debate mais racional, no alinhamento de agendas com as lideranças do Congresso a fim de aprovar projetos cruciais, e até mesmo na mediação das conflituosas declarações presidenciais dirigidas ao Banco Central, o ministro sabe que há um longo percurso a trilhar. A desidratação ao longo da tramitação legislativa tornou mais difícil alcançar as ambiciosas metas calculadas pela equipe econômica. E o mais grave: anos eleitorais costumam estimular a atração dos políticos pela gastança, ajudando a irrigar os feitos de obras e resultados com potencial eleitoral de curto prazo. A começar pelo próprio Lula, hoje parcialmente tisnado pelo viés de baixa em sua popularidade.

Haddad sabe das tormentas que virão em 2024 e precisará mais do que nunca do apoio do presidente para enfrentá-las. A dúvida é qual Lula responderá ao seu chamado: aquele que chancelou algumas de suas principais contendas ou o devorador de orçamentos em nome dos dividendos eleitorais de curto prazo?

Falatório não reduz criminalidade

O Estado de S. Paulo

Com incurável mania de grandeza e confusão entre comunicação pública e governamental, o PT combate um problema real e uma insatisfação da população com campanha publicitária

Eis uma certeza nos métodos de gestão lulopetistas: resultados modestos em áreas centrais, dificuldades em programas governamentais, questionamentos da população, tudo isso se resolve com uma boa campanha publicitária. Nada de dar prioridade ao necessário ajuste, a partir de métricas e avaliação das políticas implementadas. Nada de fazer uma correção incremental de rumos, algo natural na boa gestão pública. Nada de concentrar recursos para campanhas de utilidade pública e prestação de serviços. A bala de prata petista, mais eficiente segundo tal lógica, é a chamada “disputa de narrativa”, capaz de difundir o discurso triunfalista, governista e partidário.

A nova evidência dessa deformação de propósitos é a informação de que uma das primeiras campanhas de 2024 será destinada à segurança pública. Com o mote “Brasil unido contra o crime”, o governo promete exaltar suas ações no combate ao crime organizado e às milícias. As cabeças pensantes do Palácio do Planalto e suas agências de publicidade tentarão mostrar ao distinto público o que vêm fazendo a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e as Forças Armadas nas fronteiras, portos e aeroportos, e o combate aos crimes na internet, à violência contra as mulheres e à pedofilia, além de celebrar as parcerias firmadas com Estados e municípios.

Há duas peças que estão no ar e têm muito a ver com a prometida campanha da segurança pública: uma sobre a cultura de paz nas escolas e outra sobre o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), adotada pelo governo federal para reforçar a fiscalização em portos e aeroportos do País. O governo poderia concentrar seus esforços em tratar os temas como informação de interesse público, ajudando a população a promover uma cultura de paz nas escolas, por exemplo, ou entender melhor a natureza da ação da chamada GLO. Mas com sua incurável mania de grandeza, especialmente diante de resultados nem tão celebráveis assim, o presidente Lula da Silva e seus bajuladores acham insuficiente. É preciso mais.

A escolha do tema é providencial. Em dezembro, pesquisa da Quaest/UFMG mostrou que a sensação de insegurança havia crescido. Oito em cada dez brasileiros enxergaram agravamento da violência em 2023. A mesma fatia (81%) acha que a segurança pública e o crime organizado são problemas nacionais, enquanto 83% consideram que as facções criminosas têm ganhado força. Mais: 43% acham que Lula vai melhor do que o antecessor; 43% consideram que seu desempenho é pior. Também em dezembro, o Datafolha mostrou a segurança pública como o segundo principal problema apontado pela população.

Embora seja prerrogativa concentrada nos governos estaduais, a segurança pública divide a conta entre governadores e o presidente. E, para além das percepções, o governo federal tem seu papel fundamental de indução das políticas dos Estados e do direcionamento dos recursos distribuídos no Plano Nacional de Segurança Pública. O que se viu no primeiro ano, porém, foi a soma de algumas boas iniciativas com muita espuma retórica e lacradora, um estado de campanha permanente na mídia e nas redes sociais que contamina as ações num terreno em que a técnica, as evidências e a despolitização devem prevalecer. Para agravar, a iminente saída do ministro Flávio Dino para o STF e o esforço um tanto constrangedor do seu secretário executivo, Ricardo Capelli, para se manter no cargo geram mais ações erráticas.

Para reagir a esses problemas, o governo se protege com seu habitual desvio de entendimento sobre o papel da comunicação pública. Com campanha publicitária ou uso desmedido do aparelho estatal, sobretudo a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), prevalecem narrativas fiéis à visão de mundo do PT e seus aliados. “Pública”, no caso, resultaria em algo menos partidário, menos governista e mais independente. Evidentemente tal promessa nunca se cumpriu. Nem com Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer ou Jair Bolsonaro – em todos, em maior ou menor grau, a balança editorial pendeu invariavelmente para os pontos de vista convenientes ao governo de ocasião. À esquerda ou à direita, o dano é o mesmo: uma comunicação pública que se confunde com a governamental e se converte num megafone de adulação de autoridades e projetos partidários.

O outro lado do recorde da balança

O Estado de S. Paulo

Saldo de quase US$ 100 bi reflete tanto a força do agro quanto a paralisia industrial

O recorde histórico da balança comercial em 2023, de US$ 98,8 bilhões, é uma excelente notícia que embute também um lado bem ruim. O destaque positivo foi, sem dúvida, o aumento surpreendente do volume de grãos exportados pelo Brasil, que garantiu o ótimo saldo financeiro a despeito da queda de valor das commodities agrícolas. O ruim foi a queda das importações, que, na economia nacional, caminha de mãos dadas com a taxa de investimento. Ou seja, quando as compras no exterior caem, é sinal de que pouco se está investindo por aqui.

Os dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) mostram o crescimento de 60,6% do saldo da balança em 2023. Mas, nessa aritmética, a queda de 11,7% das importações pesou mais do que o aumento de 1,7% das exportações. Levando em conta que, no ano anterior, o desempenho de ambos havia sido muito positivo, é possível entender a relação. As compras do exterior registraram aumento de 24,2% em 2022; e as vendas, de 19%. O resultado, naquele ano, foi de estabilidade no saldo comercial, com avanço de apenas 0,2% ante 2021.

Essa batelada de números é necessária para confirmar duas constatações básicas. A primeira é que o setor agropecuário foi, de forma incontestável, o principal suporte da economia brasileira em 2023. Produções recordes das principais culturas, como soja, algodão e milho, levaram ao aumento expressivo das exportações. As estimativas para o total do ano indicam avanço de 25% no volume de vendas da agropecuária.

A segunda é que a paralisia da indústria de transformação, principal importador nacional, fica ratificada pela queda das compras externas. Como bem diz o nome, essa indústria transforma matérias-primas em produtos intermediários, como o aço, ou bens de consumo final. Quando a atividade vai bem, a economia geral está aquecida. É exatamente o que faltou em 2023, apesar das inúmeras promessas do governo Lula da Silva sobre um plano de reativação industrial.

O calendário de 2024, ano de eleições municipais, prevê um grande esforço do governo para rodar as obras do “novo PAC”. Num cenário como o atual, essa indução pode representar um perigo em dobro, por não espelhar a realidade. O investimento da iniciativa privada deve vir do aumento natural da demanda e da melhoria do crédito. De nada adianta forçar um crescimento artificial – consequência do impulso do governo a seu cronograma de obras – que não se sustente a médio e longo prazos.

Hoje é impossível captar as tendências da balança para 2024 por causa de diversos aspectos, inclusive no agro, estrela do ano passado. Castigada no fim de 2023 por questões climáticas, a queda na produção de soja é certa, dizem especialistas. A dúvida é de quanto será. O comportamento internacional do petróleo, outro item de peso na pauta brasileira, é uma total incógnita, assim como o desempenho de parceiros importantes, como China e Argentina. Uma reação industrial poderia amparar não apenas o comércio, como toda a economia – se fosse essa uma prioridade real do governo.

Paz e respeito por um Brasil melhor

Correio Braziliense

Em 8 de janeiro de 2023, incitados pelo ódio e ardente anseio de ressuscitar os piores tempos da República, centenas de brasileiros, capitaneados pelos contrários à democracia, tentaram um golpe de Estado. Invadiram a Esplanada dos Ministérios e vandalizaram as sedes dos Três Poderes

Em 31 de março de 1964 — 60 anos atrás —, o Brasil mergulhou na ditadura militar. Por mais de duas décadas, prevaleceu o obscurantismo. O país perdeu o viço e o brilho do azul, do verde e do amarelo, e passou a vivenciar o luto, a amargura e uma tristeza profunda. Faltava-lhe liberdade e sobrava violência aos opositores do Estado de opressão. O estadista britânico Winston Churchill, morto em 1965, foi taxativo: "A democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela".

Em 8 de janeiro de 2023, incitados pelo ódio e ardente anseio de ressuscitar os piores tempos da República, centenas de brasileiros, capitaneados pelos contrários à democracia, tentaram um golpe de Estado. Invadiram a Esplanada dos Ministérios e vandalizaram as sedes dos Três Poderes — Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Estavam certos de que teriam o apoio das Forças Armadas e, assim, conseguiriam esgarçar a democracia. Dessa vez, não tiveram a plena anuência dos militares, das igrejas e muito menos da maioria dos brasileiros, que desfrutam das liberdades e de direitos cidadãos recuperados há 35 anos e amalgamados pela Constituição de 1988. A investida brutal de abolição da democracia foi frustrada.

Um ano depois da tentativa de golpe, o Brasil ainda vive dividido. Mas é preciso cicatrizar as feridas dos antidemocratas e defensores da perenidade dos valores civilizatórios que tornaram a Constituição de 1988 uma Carta Cidadã, como foi batizada pelo então deputado Ulysses Guimarães. A Lei Maior impactou a sociedade que, na época, também estava dividida. O bom senso, o respeito e a convicção de que o regime anterior era nocivo prevaleceram. Sem saber, eles seguiram o conceito do jurista Ayres Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, explicitado em entrevista ao Correio Braziliense (31/12/2023): "Democracia é o regime que mais incentiva a formação de consensos".

Os constituintes dos mais diferentes matizes ideológicos abriram mão de seus interesses pessoais e de grupos em favor da reconstrução de um Brasil democrático, respeitoso, carente de justiça social e econômica. Reconheceram a importância da igualdade ante a diversidade étnica, de gênero, de origem, religiosa, política — elementos que sempre deram singularidade ao perfil do país, entre todas as nações. Admitiram, ainda que inconscientemente, que "fora da democracia só existe uma coisa: a barbárie", como afirmou o ministro Ayres Britto.

A incivilidade não cabe no Brasil do século 21, mesmo com todas as suas mazelas sociais e econômicas. As deficiências impõem aos poderes republicanos e a todas as forças vivas da sociedade encontrar soluções para romper as barreiras ao desenvolvimento econômico, a mais igualdade e equidade. Para isso, é essencial que os Três Poderes, respeitados os limites de sua independência, sejam harmônicos no enfrentamento dos desafios colocados à nação. As divergências de qualquer natureza, sobretudo as políticas e ideológicas, não podem instigar a divisão violenta, que leva os cidadãos aos atos extremos.

Espera-se que o trágico e vergonhoso episódio de 8 de janeiro de 2023 jamais seja repetido. Cabe ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário expressar, por meio de exemplos, a repulsa aos valores antidemocráticos, aspirando do ar o ódio que contamina a atmosfera do país. Paz, harmonia e empenho incansável na construção de um Brasil melhor são tudo que a sociedade brasileira espera dos que ocupam os Poderes da República. 

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