Saunders, de origem paraense, morava em Brasília, mas casara-se com a pintora catarinense, Vera Sabino, e vivia agora em Florianópolis. Era encantado com a paisagem da Ilha. Durante três anos caminhou solitário pelo seu entorno, carregando cavaletes, tintas e pincéis, tentando recompor, em telas, a paisagem original daquelas belíssimas praias, protegidas como terrenos de Marinha. Seus quadros desapareceram rapidamente.
Os incorporadores imobiliários e empresas de engenharia, que sempre financiavam campanhas políticas, direcionavam recursos a segmentos e candidatos locais que melhor se acomodavam aos seus interesses pouco explícitos, e que chegavam à população fantasiados pela publicidade.
Isso traz à memória o nome de Ricardo Saunders. Ninguém se lembra dele em Belém, em Brasília, no Rio de Janeiro e São Paulo, onde esteve também, em Florianópolis, Goiânia, finalmente, Pirenópolis, onde morreu, aos 52 anos, por volta de 1998. Foi enterrado, sem qualquer registro especial, quase como um anônimo.
Curioso, habilidoso e criativo desenhista, tinha sangue índio misturado com o de inglês. Sua mãe era uma missionária que desembarcara na Amazônia, na baia de Guajará, junto com outros evangelistas britânicos. Nas suas visitas às comunidades indígenas, terminou passando a viver com um caboclo amazonense, seu guia, que vivia da extração da castanha e do látex. O prolífico casal gerou três a quatro filhos, entre eles o Ricardo, um menino esperto e virtuoso.
Desde criança,
Saunders ouvia as histórias contadas pelos pais. Nascida em
Southhampton, de onde partiam os navios ingleses para o mundo, ela falava da
Inglaterra. O pai, sobre os e crenças da floresta amazônica.
Menino ainda,
aquelas lendas inspirou-o a brincar de fazer máscaras e esculturas de madeira e
cascas de coco, com expressões meio escatológicas, que vendia pelas ruas de
Belém. Havia terminado o curso secundário, e ainda não sabia o que fazer.
Certo dia, foi atraído, casualmente, por uma palestra de Darcy Ribeiro, ao entrar, no cinema Olympia, em Belém. Na tentativa de atrair estudantes para a Universidade de Brasília, Darcy e Anísio Teixeira, viajavam pelo País, falando sobre a nova Universidade: "Pública, livre, autônoma, laica e gratuita!”. Cursos superiores no Brasil eram quase todos privados e pagos. Por onde passava, Darcy fazia um chamamento aos jovens: "Vão para Brasília! Na UnB tem mais vagas do que candidato". Além disso, tem alojamento e restaurante estudantil.
Saunders despertou, e resolveu perguntar a Darcy se na UnB tinha lugar para ele. Já reitor, Darcy respondeu afirmativamente. Ele arranjou um dinheirinho, tomou o ônibus que já fazia o percurso de Belém a Brasília e, uma semana depois desembarcava no campus, carregando algumas tralhas. duas calças de brim e três batas com desenhos do grafismo marajoara. Empolgou-se, de imediato, com aquele movimento de obras e de jovens de todo o Brasil que chegavam ali. Instalou-se no barracão do Instituto de Artes, e logo fez amigos: Marcos Ribas, da Comunicação, e Raquel...., das Artes. Vez por outra pintavam uma parede por ali e, eventualmente, deixavam sua marca em muradas mais expostas do Plano Piloto. Teriam sido eles, os primeiros grafiteiros de Brasília.
Ganhou uma sala no ICA, mas não tinha sequer matrícula regular. Ali, ele o Marquinhos e a Raquel, desafiados por uma máquina de filmar que ninguém usava, começaram a produzir desenhos em quadrinhos, a partir de grafites, traçados sobre folhas de acetado e celofane barato, apagados, após serem filmados, para gravar novas histórias em quadrinhos, que sumiram no meio daquelas invasões policiais no campus.
Seus desenhos grafitados tinham um estilo lúdico, debochado e, ao mesmo tempo, originalíssimos. Foi dele a primeira ideia do "Eixão do Lazer", em Brasília, que consistia em fechar o trânsito de automóveis aos domingos e feriados, destinando-o para o lazer das famílias que habitavam os prédios aos lados. Ali, ele fazia desenhos lúdicos para crianças.
Achava Brasília propícia para bicicleta. Chegou a ter uma. E andava pela cidade procurando paredes nuas para pintar grandes painéis, mas não tinha vocação para a clandestinidade. As paredes internas do Shoping Conic eram suas preferidas imaginárias. Além de proibida, a grafitagem era vigiada pelos defensores do projeto modernista (limpo) da Capital. Até tentou, mas foi pego, e teve de desmanchar tudo com as próprias mãos.
Os grafite brasiliense que veio, em seguida, terminou liberado, após os prédios da avenida W-3 amanheceram um dia todos grafitados, sem que a polícia descobrisse os autores. Separado da mulher, Ricardo Saunders trocou Brasília por Pirenópolis (Go). A Florianópolis nunca mais voltou depois que tomou conhecimento da inutilidade dos seus protestos: o ensaio das imobiliárias tornara-se realidade. Os condomínios praianos privados terminaram espalhados pela costa brasileira. Agora querem mais.
*Jornalista e professor
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Assim é!
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