Valor Econômico
Inclusão financeira abriu o mercado de crédito para largas parcelas da sociedade, mas tem como principal efeito colateral o endividamento
Há duas semanas, Carlos B, um publicitário de
São Paulo, foi almoçar em Pinheiros, deixou o carro em um estacionamento ao
lado do restaurante e, ao sair, tentou pagar a conta ao manobrista com uma nota
de R$ 20. “Desculpe, senhor, mas não aceitamos dinheiro; o senhor poderia pagar
com pix ou cartão?” Carlos fez um pix, mas ficou se perguntando: “Estão
extinguindo o dinheiro?”.
Esse caso é um simples sinal do avanço da inclusão financeira da sociedade brasileira, mas não apenas nas classes mais abastadas. O processo de inclusão avançou de forma extraordinária para as pessoas de baixa renda nas últimas duas décadas. Uma pesquisa feita por quatro economistas da FGV*, com apoio e dados do Banco Central, mostra que 92% dos adultos brasileiros de baixa renda têm acesso a contas correntes e a sistemas de pagamento.
Lauro Gonzales, um dos autores do estudo,
observa que três fatores foram importantes para esse avanço da inclusão.
O primeiro foi a evolução da regulação, sob a
liderança do Banco Central, com um conjunto de medidas que aprimoraram o
funcionamento do mercado de serviços financeiros. A criação de instituições de
pagamento, por exemplo, ampliou a concorrência no setor. Mais recentemente, o
lançamento do Pix reduziu os custos de transações para pagamentos, fato
extremamente positivo para a população de baixa renda. Entre os beneficiários
do Bolsa Família, 90% têm pelo menos uma chave Pix.
O segundo fator foram os avanços tecnológicos
que ampliaram a capacidade de atuação das instituições que oferecem serviços
financeiros, com efeito positivo para a concorrência. Instituiu-se, por
exemplo, o compartilhamento de informações, o relatório de crédito positivo e a
portabilidade de crédito.
Avanço importante foi a adoção do Cadastro
Único (CadÚnico), registro de todas as famílias vulneráveis/pobres que recebem
qualquer tipo de benefício do governo - o critério básico para a inscrição é
ter renda familiar abaixo de meio salário mínimo por pessoa por mês. O
cadastramento é obrigatório para Bolsa Família, pensão não contributiva para
maiores de 65 anos (BPC), desconto na conta de luz, isenção de taxas de
serviços públicos etc. O CadÚnico passou a ser usado como uma espécie de
espelho da baixa renda no país, registro que, obviamente, exige atualização e
fiscalização permanentes para combater fraudes.
O terceiro fator, também muito importante,
foi o aumento dos recursos destinados a transferências de renda. O destaque
pertence ao Bolsa Família, que teve valores triplicados de 2019 a 2023. Essas
transferências, para cerca de 61 milhões de adultos, de 21,3 milhões de
famílias, representaram 1,5% do PIB no ano passado. Com isso, segundo Gonzales,
a população de baixa renda passou a ter um fluxo de renda mensal muito mais
robusto, o que aumentou o interesse das instituições financeiras em servir a
esse público.
Esse processo foi positivo para economia em
geral e incluiu no mercado de crédito largas parcelas da sociedade brasileira.
Mas a principal ameaça potencial desse avanço, sequela da inclusão financeira,
é o endividamento.
Lauro Gonzales observa que vários dos
serviços oferecidos, principalmente de crédito, têm colaborado para aumento do
comprometimento de renda e do superendividamento entre os beneficiários de
programas sociais, caso do Bolsa Família. Ou seja, a dimensão qualidade tem
ficado para trás.
O economista sugere que é preciso continuar
aprimorando a regulação e cita como exemplos negativos os casos das ofertas
indiscriminadas de cartões de crédito ou de crédito consignado. Hoje, o
comprometimento de renda dos beneficiários do Bolsa Família é de 37%, ou seja,
para cada R$ 100 de renda, R$ 37 são direcionados ao pagamento de amortização e
juros de dívidas.
“Os efeitos do crédito podem acabar sendo
negativos para o bem-estar se jogarem os beneficiários do BF para uma espiral
de superendividamento”, alerta o economista. O alerta se tornou mais importante
depois que o Banco Central revelou que bolsistas gastaram R$ 3 bilhões em
apostas nas bets em um único mês, agosto.
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