quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

O conserto da política - William Waack

O Estado de S. Paulo

A briga entre o Legislativo e Supremo Tribunal Federal pelo sistema de governo

O problema das emendas parlamentares entre STF e Congresso deixou há muito de ser questão de transparência no uso do dinheiro público, embora também seja. Os dois poderes estão engalfinhados em torno da definição de sistema de governo.

O ministro Flávio Dino, referendado pelo plenário, escreveu que o atual sistema não é parlamentarista, nem presidencialista, nem semipresidencialista. É algo “singular”, cujo grau de ingerência do Congresso no orçamento público não se equipara a nenhum outro.

Suspeita-se, diz o ministro, que esse sistema de emendas possui uma “face oculta” (a falta de transparência) que leva a “perpetuação do poder” e “continuísmo político”. O que torna “inevitável e compulsória” a ampliação dos controles institucionais – leia-se controle pelo STF.

Em outras palavras, o STF embarcou no caso das emendas numa espécie de reforma do sistema de governo. E tenta “consertar” pela via jurídica um longo processo pelo qual o Congresso avançou sobre o Executivo na posse de uma ferramenta clássica de política: a alocação de recursos via orçamento público.

Está evidente que o STF encara como absurdo a ser corrigido o fato de o Legislativo ter aumentado de cerca de 5% para cerca de 24% nos últimos cinco anos o valor das emendas nas despesas discricionárias. No fundo, a queixa se refere a um dado central da política brasileira.

Pois o que explica esse considerável avanço do Congresso foi uma sucessão de presidentes fracos, começando por Dilma, que foram entregando os anéis e ao mesmo tempo os dedos. Os parlamentares viram essa evolução de forma diferente: desde a instauração das emendas impositivas (cuja execução é obrigatória e independente de negociação com o governo), a partir de 2015, consideram que deixaram de ser “reféns” do Planalto.

A partir de 1988, o desenho do sistema de governo brasileiro obrigou a figura forte do chefe do Executivo a se entender com um Congresso dono de muitos poderes e prerrogativas. Cujas tradicionais características de fracionamento e baixa representatividade foram se transformando, por falência dos partidos e pelo esquema de emendas, num sistema interno de “capitanias hereditárias” (também isso o STF lamenta) que é a cara do Centrão.

Consolidado como está, e com um Executivo sem votos no Legislativo, mesmo com a mãozinha do STF o atual sistema de governo não volta ao falecido “presidencialismo de coalizão”, que Lula achou que assumiria. Ao contrário, está se tornando ainda mais complexo e virou mesmo um tabuleiro de três bordas. O STF sugere querer dar à política rumos e balizas distintas do que ela estabeleceu. Acaba sendo engolido por ela.

 

 

Um comentário:

Tito Oliveira disse...

O artigo do WW é extremamente lúcido e reflete a embanação dessa democracia jabuticada autofagica. Precisamos para contrapor ao atual estado das coisas de um Projeto de Nação, sem isso vamos viver nesse eterno enxugar gelo.