Vamos examinar isso de perto.
Em dezembro de 1927, Astrojildo Pereira, então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, vai à Bolívia conversar com Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Seu objetivo é muito claro: atrair Prestes para as hostes do Partido Comunista. Em seguida, Astrojildo Pereira parte para Moscou, já que integrava o Secretariado da Internacional Comunista (IC). Composto por 56 membros, o Secretariado da IC era a instância máxima da revolução mundial. Astrojildo permanece em Moscou até 1929, quando retorna ao Brasil.
Em 1928, Palmiro Togliatti, representante do
Partido Comunista Italiano (PCI) junto à Internacional Comunista, igualmente
membro do Secretariado da IC, troca correspondência com Astrojildo Pereira a
respeito da situação da classe trabalhadora no Brasil. Há uma documentação
nesse sentido nos arquivos de Astrojildo Pereira catalogados no Centro de
Documentação e Memória da UNESP, e agradeço a historiadora Renata Cotrim por
ter me indicado essa correspondência. Nesse mesmo ano de 1928, segundo me
relatou Giuseppe Vacca no Rio de Janeiro, há cerca de 15 anos, Togliatti
escreveu duas cartas a Luiz Carlos Prestes. Naturalmente, somos levados a crer
que essas cartas têm que ver com a passagem de Astrojildo Pereira por Moscou e
seu encontro com Luiz Carlos Prestes no ano anterior, na Bolívia. De qualquer
forma, já em 1931, Prestes tomava o rumo da então capital soviética, onde
trabalhava como engenheiro e aprofundava seus estudos de marxismo. Em tempo:
Giuseppe Vacca era o responsável pelos arquivos do Instituto Gramsci na Itália.
Na ocasião, conversamos com Francisco Inácio de Almeida, ex-secretário político
de Luiz Carlos Prestes na União Soviética nos anos 70, que nos relatou nada
saber a respeito dessa correspondência de Togliatti com Prestes. Fiz a mesma
pergunta a Luiz Carlos Prestes Filho, que também desconhecia o fato.
Cai o pano. Em janeiro de 1933, Adolf Hitler
assumiu o poder na Alemanha, sob os destroços da República de Weimar. Tem
início uma repressão brutal aos comunistas. O operário e dirigente comunista
búlgaro Georgi Dimitrov é preso na Alemanha. Seu comportamento diante do
Tribunal nazista de Leipzig entrou para a História, não só pela coragem pessoal
e política demonstrada, como também pela inteligência em desmascarar que os
hitleristas não tinham “razão, apenas força”, conforme escreveu Bertolt Brecht
em belo poema dedicado ao próprio Dimitrov. Uma vez solto, Dimitrov ganha
imediatamente a
União Soviética, defendendo junto à
Internacional Comunista, da qual se tornaria o secretário-geral, a necessidade
de uma ampla frente para derrotar o nazismo no mundo. Já no segundo semestre de
1934, começa a se formar a Aliança Nacional Libertadora no Brasil. Em agosto,
Prestes adere oficialmente ao PCB, ainda residindo em Moscou. O PCB se recusou,
em um primeiro momento, a integrar a ANL: foi preciso que Luiz Carlos Prestes
se empenhasse pessoalmente nesse sentido. A historiadora Marly Vianna se debruçou
com propriedade sobre essa questão. Em janeiro de 1935, é divulgado o primeiro
manifesto da ANL. Pouco antes, mais exatamente em outubro de 1934, tem início a
Longa Marcha na China. Otto Braun, um comunista alemão, vai assessorar o
dirigente chinês Mao Tsé-Toung nessa empreitada. A comunista alemã Olga
Benário, que fora casada com Otto Braun, vai prestar, por seu turno, assessoria
a Luiz Carlos Prestes no Brasil. Detalhe importantíssimo: a Coluna Prestes
influenciou Mao Tsé-Toung e os comunistas chineses em sua Longa Marcha. É
possível concluir, com base nesses dados, que Brasil e China entraram
decididamente na mira da Internacional Comunista, após o fracasso das
experiências e levantes operários na Itália, Alemanha, Hungria e Bulgária,
países ocidentais. Em outras palavras, a IC passava a depositar suas fichas no
Oriente e no extremo-Ocidente, isto é, no Brasil.
Com a perseguição à ANL, colocada na
ilegalidade em julho de 1935 pelo governo Vargas, alguns setores aliancistas se
precipitaram, considerando que os canais legais estavam definitivamente
fechados. Confundiram assim canais legais com canais políticos. Ou seja,
optaram pela luta armada, mordendo a isca de Getúlio Vargas, já então em marcha
batida para o autoritarismo.
A rigor, o que importava para a Internacional
Comunista, naquela quadra, era o combate ao fascismo, em clara ascensão no
mundo, fosse do jeito que fosse. O fato de o programa da ANL ser correto não
significa que não tenham ocorrido graves equívocos em sua condução, os quais se
traduziram no Levante de Novembro de 1935. A palavra de ordem da ANL já se
revelava contraditória, mesclando a ideia da Frente Ampla com a experiência dos
sovietes – Todo poder à Aliança Nacional Libertadora.
É preciso constatar que a situação dominante
nas Forças Armadas, profundamente desajustadas em matéria de disciplina naquele
momento, facilitou de certa forma a opção pela luta armada. Conforme escreveu
mais tarde Giocondo Dias, era mais fácil agitar os quartéis do que organizar o
Partido nas fábricas. Seja como for, muitas lideranças de peso – de Luiz Carlos
Prestes a Giocondo Dias e deste a Agliberto Vieira de Azevedo, Dinarco Reis e
Gregório Bezerra – fizeram autocrítica de sua participação no levante aliancista.
Posso dar, em relação a isso, um testemunho pessoal, pois convivi, em menor ou
maior grau, com todos eles. Porém, é preciso reconhecer que esses homens
pagaram um preço muito alto por seu engajamento, ficando encarcerados por anos
a fio nas masmorras de Getúlio Vargas. Mais: nem todos os aliancistas eram
comunistas: em Natal, por exemplo, os chamados cafeístas, os partidários de
Café Filho, eram a principal força presente no levante de novembro. Em 1946, em
discurso na Assembleia Legislativa da Bahia, Giocondo Dias enalteceu a
“coragem” dos combatentes dos dois lados em disputa em 1935. Era preciso
grandeza.
O caráter insurrecional do Levante de 35 foi atribuído à origem militar de alguns dos participantes, sobretudo comunistas. Curiosamente, esses mesmos comunistas originários das Forças Armadas não tomaram o caminho da luta armada, após o Golpe de 64. Teriam assimilado os erros do passado, evitando repeti-los quase três décadas mais tarde? Seja como for, os principais dirigentes da guerrilha pós-64 eram todos de origem civil, com raras exceções.
Fundada há 90 anos, é fundamental examinar a
Aliança Nacional Libertadora com o máximo de rigor possível, no caminho traçado
pelos estudos de Marly Vianna, por exemplo. O que não exclui que a paixão seja
deixada de lado. Por uma razão simples: a subjetividade é peça fundamental do
processo de conhecimento – e esse conhecimento implica o cruzamento de alguns
dados.
*Historiador
2 comentários:
Brilhante, como sempre, IVAN ALVES FILHO consegue correlacionar fatos históricos independentes, em busca de uma linha condutora da ação revolucionária mundial, articulada ou espontânea. É fantástica a forma dialética encontrada. Merece reflexão e DIVULGAÇÃO. É o que vou fazer
O texto assima é de minha autoria, em homenagem ao grande historiador Ivan Alves Filho.
Assino: Wellington Mangueira
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