A 15 dias das urnas, o cenário eleitoral de São Paulo parece ter
estacionado. A consolidação de Celso Russomanno nas pesquisas de intenção de
voto para a Prefeitura impressiona, mas não é o único fato a chamar atenção,
nem dá para ser explicada simplesmente pela hipótese do voto religioso ou da
polarização direita/esquerda. Há coisas no subsolo da vida urbana com maior
poder de determinação.
Antes de tudo, é preciso considerar que o ingresso da cidade num modo de
vida movido a conectividade intensiva, redes segmentadas, tribos de
convivência, respostas individualizadas para problemas comuns e consumismo
frenético reforçou e complicou a transformação que vinha ocorrendo na
estratificação social.
Não mais existe a São Paulo sisuda e pujante dos anos 1950, nem a São Paulo
dos migrantes dos anos 1960-1970 e assustada com seu próprio crescimento, que
empurrou muita gente para bairros novos e modificou a feição de todos os
bairros. A cidade foi deixando de ser da indústria, entregou-se aos bancos, ao
comércio e aos serviços. Com o tempo, foram-se alterando os agrupamentos, as
fronteiras sociais, os humores coletivos. A "velha e boa classe
média" passou a conviver com uma "nova classe média", voraz e
repleta de carências e expectativas, que impactou a cidade. Um "mercado
eleitoral" se instituiu clonando o mercado propriamente dito: o cidadão,
convertido em consumidor possessivo na economia, transferiu para a política seu
modo de ser. Desinteressou-se de ideologias e agarrou-se ao que lhe parece mais
útil, prático e confortável, que não lhe exige muito esforço de decodificação.
Tal processo, por um lado, aprofundou as relações entre negócios e política.
Por outro, facilitou a banalização da ideia de "novo", tanto no
consumo quanto nas escolhas eleitorais. A cidade passou a ser vista como
necessitando de novidades políticas e estas, por sua vez, foram traduzidas pelo
registro simples do "sangue novo", ou seja, pessoas mais jovens,
pouco importando se elas, como no exemplo de Russomanno, expressem práticas
tradicionais devidamente recozidas no caldeirão do marketing eleitoral.
O PMDB fez isso com Gabriel Chalita, que não conseguiu decolar. Fernando
Haddad apresentou-se como renovação, mas a sombra ostensiva de Lula e o acordo
com Paulo Maluf acabaram por bloqueá-lo. Dos principais candidatos, somente
José Serra fugiu à regra, mas, mesmo assim, quis ser visto como candidato da
mudança.
Um tipo específico de "despolitização" tendeu então a se fixar.
Ele não expressa um desinteresse pela política em si, mas pela política feita
por políticos e partidos; expressa inconscientemente a adesão a um Estado menos
universalista e mais "protetor", voltado para o atendimento de
demandas focalizadas, centradas nos mais carentes e nos que se sentem mais
prejudicados pela vida. Por essa trilha foram encorpando os discursos que
prometem "calor e afeto", mais que "obras e gestão".
Nesse contexto, Russomanno cresceu; Serra e Haddad, não - não souberam falar
a nova língua. Serra teve poucas referências heroicas para mobilizar e Haddad
não teve como se apropriar das referências heroicas que possui (Lula), pois
carisma, como se sabe, não se transfere.
A cidade que se reinventou ao longo do tempo também se ressentiu de um forte
deslocamento no plano da religiosidade. Os católicos perderam terreno para os
evangélicos e estes, conduzidos em sua maioria por pastores de novo tipo,
empresários da fé, em primeiro lugar fizeram da religião uma operação midiática
e, depois, evangelizaram a política, convertendo-a em tema de cultos, conselhos
e orientações, não de reflexão crítica e engajamento secular.
Celso Russomanno vestiu o figurino da evangelização. Beneficiou-se de uma
exposição prévia que compensou extraordinariamente os poucos minutos de que
dispõe no horário eleitoral. Foi ajudado pelo fato de não ter um partido a
seguir-lhe os passos e a cobrar-lhe compromissos. Sua campanha foi de
pastoreio, com tons que prometem uma época em que todos serão devidamente
cuidados, guiados e respeitados.
Mas nada disso faria sentido se não houvesse a degradação urbana. A cidade
gigante pulsa modernidade, mas desaprendeu em termos cívicos, não se tornou um
lugar melhor para se viver, não evoluiu politicamente. Muitos serviços públicos
essenciais deixam a desejar, tudo ficou extremamente difícil e custoso, o que
era feio e ruim piorou, não houve acréscimos estéticos nem facilidades. A
reação imediatista culpou os prefeitos, transferindo a solução para alguém que
combata os problemas a partir de cima, sem titubear ou perder tempo com
picuinhas políticas. Chalita quis situar-se além de PT e PSDB, Russomanno disse
que não se candidatou para ser "líder político", mas prefeito.
Incapazes de captar os eixos desse processo, os políticos, em sua maioria,
continuaram a seguir o mesmo roteiro de antes: horário eleitoral, marketing,
foco gerencial-administrativo, obras e realizações. Poucos perceberam o
esgotamento da fórmula. Os dois principais partidos, PT e PSDB, expuseram suas
tensões a céu aberto. Fizeram isso por inércia (o costume) e por cálculo.
Acharam que assim poderiam pautar os debates. Deixaram caminho aberto para
Russomanno, que habilmente se manteve à margem de uma luta que se tornou
derradeiro recurso para que um dos dois conflagrados possa chegar ao segundo turno.
Quinze dias é muito tempo em política. Não há como dizer que o quadro esteja
definido. Mas os ventos da mudança já estão a soprar sobre as ruínas de um
estilo de fazer política que perdeu sintonia com a vida e as expectativas das
pessoas. No horizonte desponta um Estado meio que prisioneiro da fé e do
mercado. O silêncio democrático dos cidadãos pode ser sentido, mas não parece
ter forças para se fazer ouvir no curto prazo.
Mas não há um apocalipse à vista nem a cidade corre risco de vida.
Professor titular de Teoria Política e diretor do
Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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