Aquela se revelaria sem dúvida uma das decisões mais acertadas da minha vida. Já que eu queria de fato ser historiador, deveria procurar conhecer os arquivos que armazenavam faixas imensas da história brasileira. Por isso não hesitei: pondo em prática os conselhos do meu professor, Jean-Pierre Berthe, um respeitado latino-americanista, eu comecei a arrumar as minhas malas para Portugal. Ah, a terrinha! Destino: Alges, na periferia de Lisboa. Ou mais exatamente, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), depositário de boa parte da memória dos povos d’além-mar, outrora a ferro e fogo conquistados pelos marinheiros portugueses. O lugar ideal para um historiador sedento de informações como eu. Não tinha como me decepcionar.
A chegada a Lisboa – acredito já ter tido ocasião de dizer que desembarquei na terra de Camões em dia de Revolução, ou mais exatamente do contra-golpe do general Eanes, em 25 de novembro de 1975 – foi uma agradabilíssima surpresa. Lisboa mais parecia uma imensa Santa Teresa – ao menos para alguém como eu, que nascera e crescera no Rio de Janeiro. A cidade evocava o Rio de Janeiro dos nossos sonhos: ali era falada a nossa língua e, sobretudo, transpirava-se, apesar de um ou outro tropeço, a democracia. A comida, os sobrados do século XIX, a gentileza das pessoas, até o velho bonde – chamado de elétrico pelas bandas de lá – davam um tom nostálgico à cidade e ao cidadão expatriado que se encontrava nela. Ou será que tudo não passava de
saudade?
Logo me inteirei de que teria de pegar diariamente o elétrico 15 para chegar a Alges. Vibrei com aquilo: o elétrico não era transporte e, sim, um veículo de passeio, tamanho o prazer que sentia ao viajar nele. Em poucos minutos eu descia nas proximidades do Arquivo Histórico Ultramarino e ali permanecia a tarde inteira, à procura de documentos sobre a rebelião dos Palmares, na mui distante capitania de Pernambuco.
Era um belo prédio, de pé-direito imponente e piso de madeira escura. Todo pintado de rosa, com amplas janelas espalhadas por toda a sua fachada, o Arquivo era cercado de um muro alto e palmeiras imperiais mais altas ainda, o que lhe dava um certo ar tropical, quase faceiro. Eu gostava de passar as minhas tardes ali. De certa forma eu me sentia no interior de Minas, tão presente na minha memória de criança.
Remexendo as pastas e gavetas poeirentas do AHU, recolhi material para escrever o meu primeiro livro individual, intitulado Memorial dos Palmares. Ele foi a minha principal fonte. A minha primeira fonte, até. No início, confesso que foi duro me familiarizar com a escrita dos séculos XVII e XVIII.
Mas, pouco a pouco (e outras viagens foram-se seguindo) eu conseguia ler com relativa facilidade toda aquela documentação. Foram milhares de documentos consultados, com o objetivo de retraçar, dentro das minhas limitadas possibilidades, um dos momentos mais densos da luta pela recuperação da dignidade do homem. Pela liberdade do homem. Em Alges, eu percebi o quanto um documento do passado poderia interrogar o presente. Pois somos o que fomos, também. Fiz ali o meu aprendizado de historiador, o meu batismo de fogo.
Bons tempos aqueles de estudante encantado com as ruas, os becos, as ladeiras e os arredores majestosos da velha Lisboa! O que um jovem maravilhado com os ensinamentos históricos não poderia retirar daquela bela cidade! Hoje, mais de três décadas após a minha primeira visita aos arquivos coloniais, leio que a Universidade de Brasília, nascida dos sonhos conjugados – e delirantes, sadiamente delirantes – de Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro está divulgando o extraordinário acervo do AHU. São mais de três milhões de documentos, pelo que soube. Documentos esses que abarcam mais de três séculos de nossa História. Das mais diferentes regiões do Brasil. Um verdadeiro espetáculo democrático, facilitando o acesso à nossa memória. Minha filha Moema, que sequer sonhava em nascer quando de minha primeira viagem de pesquisa a Portugal,se formou precisamente em História e poderá, eventualmente, consultar pela internet toda essa documentação.
Os arquivos do AHU, suas milhões de páginas amarelecidas pelo tempo e rejuvenescidas pela mágica da eletrônica, são mais uma formidável ferramenta para o historiador de hoje e uma agradável recordação para o historiador de ontem - o aprendiz do passado. O aprendiz de Alges.
Durante as minhas andanças por Lisboa, Leiria e Coimbra, quando recolhia material para escrever a minha dissertação sobre o Quilombo dos Palmares e que depois resultaria no livro Memorial dos Palmares, relativo à saga dos quilombolas refugiados na serra da Barriga ao longo do século XVII e das primeiras décadas do século seguinte, não tive dificuldades em constatar ser quase uma obrigação pesquisar os escritos do Padre Antônio Vieira. Um dever de ofício. E por uma razão simples: o autor dos célebres Sermões era o ideólogo por excelência do colonialismo português, conforme definiu certa feita o historiador católico José Honório Rodrigues. Ou seja, Vieira era o principal conselheiro do Rei, aquele que enxergava melhor os problemas - e detinha, por vezes, a fórmula de resolvê-los. Estrategista político de primeira linha, Antonio Vieira era ainda um catequista e um educador extraordinário. Foi, provavelmente, a maior personalidade da cultura luso-brasileira de seu tempo.
Tive a felicidade, inclusive, de poder identificar um texto de Vieira, que dormitava como documento anônimo na Biblioteca da Ajuda (apesar do nome, um rico arquivo de manuscritos alojado no suntuoso Palácio da Ajuda, nas cercanias de Lisboa). Versando sobre o Quilombo dos Palmares e a chamada Guerra dos Bárbaros, no sertão nordestino, o documento fora visivelmente redigido por um eclesiástico. Tendo feito uma cópia, levei o texto para um especialista do Arquivo Histórico Ultramarino e, juntos, nós o comparamos a um outro documento original de Vieira existente na instituição. Uma comparação letra a letra, quase. Resultado: estávamos mesmo frente a um inédito do Padre Antônio Vieira. Sorte minha.
Por que tudo isso me vem à memória? Pelo seguinte motivo: há poucos dias, ao ler algumas passagens de Vieira, fiz a descoberta de um autor inteiramente novo. Um Vieira surpreendente; atualíssimo também. Eis um trecho, escrito há mais de três séculos: “Os sonhos são imagens da vida. Cada um sonha com o que vive. Os sonhos são uma pintura muda, em que a imaginação a portas fechadas e às escuras retrata a vida e a alma de cada um, com as cores das suas ações, dos seus propósitos e dos seus desejos”. Vieira, precursor de Freud? Quem sabe? É sempre bom lembrar que antes, muito antes da psicanálise, a religião já escarafunchava a alma humana e que o divã pode perfeitamente ser uma forma de confessionário na sociedade moderna. Resta saber o que o Padre Vieira pensaria de tudo isso, naturalmente.
Ivan Alves Filho, historiador e jornalista
Um comentário:
Muito belo texto, Ivan, pelas evocações e pelas interpretações. Abraço do Mércio
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