Este nome caia como uma luva para esta cidadezinha onde púnhamos os pés pela primeira vez em nossas vidas depois de decorridos mais de oito anos da ditadura. Mal entramos em território argentino, o chofer, cidadão argentino, que presenciara em silencio tudo o que acontecera conosco na polícia federal em Porto Alegre, dirigiu-se a Gilvan e, para surpresa nossa, em mal português, perguntou, afirmativamente:
Vocês vão para o Chile, não é? Gilvan apenas o olhou um tanto espantado com a pergunta. Mas ele prosseguiu sem se importar muito com nossa surpreendida expressão. Meio cúmplice, até.
Para quem vai de passagem para Santiago tem um hotelzinho que não é caro e fica pertinho da Estação de Ferrocaril. Vocês vão de trem por Mendoza, não é mesmo? E logo rascunhou um meio mapa, desajeitado com seu modo de ser de argentino grandalhão, mais natural desse mundo.
Só depois é que raciocinamos que o chofer devia conhecer bem esse tipo de passageiro. Por isso não nos entregou. Não fez nenhum comentário, nenhuma pressão, na hora do blá-blá-blá na polícia federal. Mas, certamente sacou nossa verdadeira história. Calou-se então. Mas quando se sentiu livre, em seu território, fez questão de nos mostrar simpatia, de nos fazer ver que era amigo e solidário. E foi dando as dicas. Sabia tão bem a rota dos exilados que se notava perfeitamente que não era a primeira vez que transportava passageiros fujões.
O ônibus prosseguia lento. Eu não me cansava de admirar a pampa Argentina. Um grupo de jovens gaúchos tocava, cantava e fazia uma tremenda algazarra agradável aos nossos ouvidos e que muito nos ajudava a relaxar. Tudo para nós era agradável. Era vida. Cada milímetro do mundo ia sendo aos poucos redescoberto. A única sombra era a saúde do Zé. O bolo de medo e ansiedade que há oito anos obstruía a boca do meu estômago desaparecera e dera lugar a uma fome insaciável. Comecei a só pensar em bife com batata frita. Todos estávamos famintos e eufóricos. Os meninos, agitados, davam gritinhos estridentes. Percebiam que algo mudara, até mesmo em nosso semblante, agora relaxado, descontraído.
Em uma lanchonete de beira de estrada o ônibus parou. Sem saber falar espanhol, pedimos “sanduíche de presunto” E outra vez o motorista: “aqui não é presunto, é jamón”. Decididamente ele se tomara de amores por nossa causa e insistia em nos assessorar. Rimos agradecidos. Ele também riu. Sempre com cara de cúmplice que sabia nosso segredo, com seus gestos largos e sua grande pulseira de metal. A partir daí assumiu quase que definitivamente nossa proteção. Qualquer revista dos policiais nos postos argentinos, lá vinha ele. Pedia nossos papeis e ele mesmo quebrava o galho. Vez por outra perguntava se o Zé estava bem, se o Giba precisava de alguma coisa. Em Buenos Aires voltou a ensinar tudo direitinho e despediu-se de nós com um vigoroso aperto de mão e um
– “Que si vayan bien, amigos”...
E nós... – Gracias, muchas gracias...amigo!!!!
Decorridos 30 anos não consigo esquecer essa figura humana, esse coração universal que por aí anda, se vivo estiver! Até hoje quando penso em seres humanos solidários, em personalidades especiais que de uma forma ou de outra, em algum momento estiveram presentes em nossas vidas, a figura grandalhona e rude deste motorista me vem á mente. E então lhe digo com uma voz que sai lá do fundo do coração:
“Gracias, muchas gracias, amigo!!!!”
Graziela Melo
Julho 1992
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