- O Estado de S.Paulo
A sua função primordial é o zelo pela justiça,e não pela acusação
O fato de o homem viver em sociedade, por ser um animal gregário, gera conflitos quando os interesses de uns não são satisfeitos em face da resistência de outros que lhes são opostos. Nesse sentido, para serem mantidas a paz e a harmonia em sociedade é imperiosa a interferência do Estado, com o escopo de aplicar o Direito e pôr fim a um conflito determinado. Essa atividade estatal é exercida por três personagens: juiz, advogado e promotor de Justiça.
A respeito das funções desempenhadas por cada um deles pairam dúvidas e incompreensões na sociedade. Sabe-se, bem a grosso modo, que o juiz aplica o Direito a um caso concreto, o advogado defende direitos de terceiros e o promotor exerce a acusação e fiscaliza o cumprimento da lei.
De todas essas atividades, as menos compreendidas são as afetas ao Ministério Público, talvez pelas distorções provocadas nos últimos tempos por seus próprios responsáveis.
Em recentes episódios envolvendo procedimentos policiais e judiciais, que capturaram o interesse da mídia e da sociedade, assistimos a um ativismo de alguns setores e membros do Ministério Público que de longe extrapolaram os lindes legais de sua competência, que é determinada pela Constituição federal e pelas leis ordinárias. Nos últimos tempos esses excessos vieram a público, como fruto de um açodamento inusitado para acusar e de um protagonismo absolutamente incompatível com a serenidade e o recato que devem orientar a conduta dos representantes da instituição.
Abro um parêntesis para uma observação: juristas de grande envergadura parecem estar reconhecendo enganos e desvios na condução das obrigações do Ministério Público, pois passaram a explicar e a defender a instituição, como se estivessem considerando fundadas as críticas e reais os seus excessos. Exemplo desse implícito reconhecimento nos deu o insigne ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que com sua autoridade de exemplar magistrado, sua verve e sua erudição dedicou longa fala, em recente julgamento, para fazer a apologia da instituição.
Na verdade, parece estar na hora de ser o Ministério Público recolocado nos caminhos de sua destinação constitucional e legal, pois se assiste, sem dúvida, a uma deformação do seu papel institucional. A maioria dos seus integrantes tem a exata consciência de seus deveres, objetivos e da adequada posição a ser adotada em face da sua missão dentro do sistema penal brasileiro, hoje como órgão de investigação – aliás, de duvidosa legitimidade –, como titular da ação penal e, precipuamente, como auxiliar da administração da justiça.
Observe-se que o promotor de Justiça tem compromissos com a busca da verdade e com o ideal de justiça idênticos aos que tem o juiz de Direito. Nesse sentido, sua função primordial é o zelo pela justiça, e não pela acusação, como com muita propriedade afirmou o eminente Hugo Mazzilli, que honrou o Ministério Público de São Paulo.
Assim, como titular da ação penal, a acusação deve refletir dados e elementos colhidos da realidade provada, e não fruto de um esforço mental, desenvolvido para justificar o cumprimento de um dever abstrato, que deve ser necessariamente cumprido. Acusar não é tarefa a ser executada de forma obstinada e obsessiva, como vem ocorrendo, especialmente com relação a investigações que despertam inusitado e inconveniente interesse midiático.
Não é por outra razão que alguns acusadores estão recorrendo a suposições, ilações, hipóteses e verdadeiras ficções para suprir a ausência de provas e tentar justificar acusações visivelmente inviáveis.
Nesses casos se tem a impressão de que, logo no nascedouro das investigações, o representante do Ministério Público assume um compromisso consigo mesmo de oferecer denúncia contra o suspeito, independentemente da existência de provas ou mesmo de indícios convincentes. Acusará com provas, sem provas ou contra as provas. Assim, estará satisfazendo as expectativas da mídia e da sociedade. Esse comportamento o afasta do seu dever maior, que é com o ideal de justiça. Repita-se: o promotor e o procurador não são acusadores obstinados, pois devem auxiliar a promover e a procurar justiça.
Em recente julgamento realizado pelo plenário do egrégio Supremo Tribunal Federal, ficou assentado que os membros do Ministério Público devem adotar no processo uma posição de imparcialidade. Essa afirmação se deu porque os srs. ministros discutiram a exceção de suspeição levantada contra o então procurador-geral da República. Apenas não a acolheram por entenderem não estar provada sua inimizade com o acusado.
Mas reconheceram de forma implícita que o promotor deve ser imparcial, pois, ao avaliar as provas para deduzir uma acusação, deve agir com absoluta isenção. Pudessem os membros do Ministério Público atuar de maneira parcial, a exceção não poderia sequer ter sido arguida. Seguiram o preceito da lei processual, que afirma serem aplicadas ao promotor as causas de suspeição previstas para o juiz. Só é suspeito quem deve ser imparcial. Contra o advogado, este, sim, não se pode arguir suspeição.
Devendo ser imparcial, acusar com base em provas e podendo agora investigar crimes, é óbvio que o promotor deve exercer suas funções desprovido de qualquer antecipada opinião sobre a responsabilidade do suspeito. Do contrário, agirá de forma parcial, preconcebida, e como investigador se sentirá no direito de selecionar as provas que só interessem à acusação, em detrimento da busca da verdade real. Sua visão probatória será seletiva. Só irão para os autos os elementos que comprometerem o suspeito. As que lhe forem favoráveis serão levadas ao lixo.
A sociedade brasileira deseja e precisa de um Ministério Público fiel às suas obrigações constitucionais e legais. Um Ministério Público que acuse com fidelidade às provas, sem protagonismo institucional ou pessoal, e que dê a certeza de ser, como sempre foi, uma instituição livre de injunções alheias à sua destinação constitucional, ligada à realização do justo.
-------------------
*Advogado criminal
Nenhum comentário:
Postar um comentário