- Valor Econômico
Não é por desvario mas por cálculo que Bolsonaro se move
Depois de uma viagem ao Brasil no início do ano passado, o editor do jornal argentino 'Ámbito Financiero', Marcelo Falak, escreveu que os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no meio militar estavam convencidos de que os dois anos de psicanálise que o ex-capitão havia feito o teriam colocado nos eixos para enfrentar uma campanha presidencial.
A informação, colhida na peregrinação do jornalista por gabinetes de generais da ativa e da reserva, fontes de suas publicações sobre a segurança da Tríplice Fronteira, nunca foi desmentida. Parte da reação negativa ao vídeo obsceno publicado pelo presidente da República em seu Twitter sugere que o serviço do suposto psicanalista restou incompleto.
Outra fatia da reação, no entanto, demonstra que o presidente da República não foi acometido por um surto de desvario ao compartilhar em uma rede social conteúdo que o próprio Twitter, duas horas depois de sua publicação, não apenas considerou sensível, como submeteu ao filtro destinado a conteúdos "pornográficos ou destinados a causar excitação sexual".
O presidente pinçou uma cena de dois supostos homossexuais para simbolizar a degeneração de um carnaval que exibiu as primeiras manifestações de massa contra seu governo. Poderia ter escolhido atos hétero de abundante e explícita oferta no Carnaval. Ao escolher a cena grotesca do bloco Blocu da tarde da segunda-feira no centro de São Paulo, Bolsonaro incitou as plateias mais radicalizadas em sua defesa nas redes sociais, especialmente as religiosas, que têm se mostrado avessas a reformas como a da Previdência.
Nas primeiras 24 horas da publicação do vídeo havia amealhado 66 mil 'curtidas' e 11 mil compartilhamentos. A Bytes, que acompanha suas redes sociais, registrou que o presidente mantém uma média de 9 mil 'curtidas' e 4 mil compartilhamentos em cerca de 500 postagens desde a posse.
Ao esmiuçar a reação positiva ao vídeo do presidente, encontrou interação com grupos evangélicos e de católicos conservadores que se manifestaram contrariamente, por exemplo, ao desfile da Gaviões da Fiel, em São Paulo, quando um integrante da escola, no papel de diabo, derrota um outro, que representava Jesus.
Não parece tampouco aleatória a escolha do carnaval de rua paulistano para a tuitada de alto risco de Jair Bolsonaro, certeiro em se desviar do Rio que premiou a Mangueira de Marielle. As cenas de arrastões e venda de bebidas e drogas para adolescentes na maior cidade do país também foram mais compartilhadas em São Paulo do que alhures. O presidente quis pegar carona na indignação registrada, por exemplo, em grupos de WhatsApp dos bairros paulistanos por onde passaram os blocos de Carnaval. É um recado também para o governador João Doria, que, em busca de mais sisudez com vistas a 2022, terá que burilar sua imagem de representante de um Estado com tão degenerada folia.
O tuíte de Bolsonaro seguiu o estilo do filho do meio, o vereador Carlos Bolsonaro, seu principal mentor nas redes, e responsável pela quebra de sigilo das mensagens do pai com um ex-ministro do seu governo. Ao veicular o vídeo, Bolsonaro ofuscou a repercussão negativa do tuíte de outro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que rotulou de "larápio posando de coitado" um avô preso suplicando à justiça para assistir ao velório de um neto. Esses rapazes, que ninguém duvide, têm pai.
No início da tarde de ontem, o presidente comemorou os mais de 100 mil seguidores que ganhou no Twitter depois da postagem do vídeo. A adesão lhe somou 3,5 milhões de seguidores na rede social. Estudiosos da rede dividem-se entre os que veem um Bolsonaro movido pela confusão entre opinião pública e rede social e aqueles que apostam no poder dos usuários na formação da opinião dos brasileiros.
Os primeiros veem a esfera pública na internet à venda com a atuação de robôs capazes de inflar, artificialmente, debates que não estão na boca do povo. Os demais, ainda que admitam a ação inicial de robôs na disseminação de polêmicas, não veem como estas possam se espraiar sem a adesão efetiva de usuários de carne e osso em redes sociais num país que tem 120 milhões pessoas conectadas à internet.
O presidente parece se mover em meio a essas polêmicas confiando mais do que nunca na intuição que o guiou durante a campanha. A postagem do vídeo indica que o presidente da República pretende apelar aos grupos mais radicalizados no núcleo duro do bolsonarismo, mais facilmente mobilizados nas redes pela pauta de costumes do que pela economia.
A estratégia funcionou na campanha porque o presidente tinha a seu favor o antilulismo e o cansaço da população com a corrupção e a violência. Ao se eleger presidente, porém, tem que lidar com a ansiedade de um eleitorado em relação a uma gestão que, ao varrer tudo isso, possa recolocar a economia de volta aos trilhos.
Para tanto, não basta a esfera pública mediada ou não pelas redes sociais. Bolsonaro terá que tramitar seus projetos num Congresso que também cultiva sua audiência. A expressão #impeachmentBolsonaro só perdia ontem para #BolsonaroTemRazão no Twitter. As pontes que o presidente precisará lançar à oposição se quiser aprovar a reforma da Previdência já foram minadas pelo anúncio de uma representação contra si, junto à Procuradoria-Geral da República, por crime de responsabilidade decorrente da divulgação de pornografia.
A divulgação do vídeo azedou o início da quaresma do presidente. Tem um governo de tímidas realizações a defender com um motorista vinculado a milícias que assina cheques para a primeira-dama, um ministro da Educação que toma os brasileiros por canibais, um chanceler que vê em Donald Trump a redenção do Ocidente, um ministro do Meio Ambiente que não reconhece o legado de Chico Mendes, e um representante da caserna (o mais influente do seu governo) que compara a posse de arma ao direito de dirigir um carro. Podia se vangloriar do ministro da Justiça, que moveu a cúpula da mais perigosa facção criminosa do país para presídios de segurança máxima sem disparar um tiro, mas preferiu desautorizá-lo. Por mais que o casal do Blocu tenha se esforçado, é difícil competir em obscenidade.
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