- Folha de S. Paulo
Parte do mundo, Brasil inclusive, regressa às trevas
Gideon Rachman, um dos bons colunistas do Financial Times, está preocupado com o que supõe ser a perspectiva de o século 21 se transformar no século do "Estado Civilização", em contraponto ao "Estado Nação", que caracterizou o século 19.
O que seria o "Estado Civilização"? Seria aquele país que representa não apenas um território histórico ou um idioma particular ou um dado grupo étnico, mas uma civilização diferente. Uma ideia que estaria ganhando terreno na Turquia, na China, na Índia, na Rússia e mesmo nos EUA.
Já seria incômodo o avanço desse tipo de mentalidade, que, sempre segundo Rachman, teria implicações iliberais, na medida em que pressuporia que definições universais sobre direitos humanos e padrões democráticos perderiam valor, posto que "cada civilização necessita instituições políticas que reflitam sua cultura única".
Compartilho essa preocupação, mas ouso supor que o problema seja bem mais sério e mais imediato: o que está em curso nos países mencionados —e aos quais ouso acrescentar o Brasil de Jair Bolsonaro—não é a construção de uma nova civilização, mas um retrocesso importante no processo civilizatório.
Não vou discutir os casos de Turquia, China, Índia e Rússia, primeiro por falta de espaço e, segundo, por estarem distantes da realidade brasileira, ao contrário dos Estados Unidos.
O que Trump está fazendo por lá é retroceder aos piores momentos do patriotismo, já definido, faz uns 300 anos, como "o último refúgio dos canalhas" (para citar o escritor inglês Samuel Johnson, 1709-1784).
Um dos mantras preferidos do presidente americano ("America First") é irmão siamês do "Deutschland, Deutschland über alles" (Alemanha acima de tudo), primeira estrofe do hino nacional alemão. Felizmente, a democracia pós-nazismo resolveu sabiamente pular essa parte, para que, nas cerimônias oficiais, seja cantada apenas a terceira estrofe.
Preciso lembrar que "Deutschland über alles" embalou mais de uma guerra em que a Alemanha se envolveu, com as trágicas consequências conhecidas, inclusive para a própria Alemanha?
Voltar a esse grito, na América como no Brasil, não é pretender erguer uma nova civilização, mas um retrocesso claro no processo civilizatório que avançou, aos trancos, mas avançou nos últimos muitos anos.
No caso específico do Brasil, já escrevi, ainda durante a campanha eleitoral, que um candidato que elogia a tortura e idolatra o único torturador condenado pela Justiça, o coronel Brilhante Ustra, marca um retrocesso civilizatório, qualquer que fosse o resultado do pleito.
Não há civilização que possa ser construída com a louvação desse tremendo desrespeito à dignidade humana que é a prática da tortura.
O que veio depois só fez confirmar aquela avaliação. É civilizado chamar de "estadista" um ditador corrupto, torturador e suspeito de pedofilia, como o paraguaio Alfredo Stroessner? Bolsonaro o fez.
É civilizado separar crianças dos pais nas fronteiras dos Estados Unidos? Trump o fez, embora tenha recuado depois, sob pressão do público.
É civilizado pendurar nas redes sociais um vídeo pornográfico? Não, não estamos falando de novo conceito de civilização, mas de regresso às trevas.
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