Estudiosos das áreas da comunicação e da ética reprovaram postura adotada pelo presidente; imagens obscenas foram vistas por 2 milhões de usuários
João Paulo Saconi / O Globo
RIO - Especialistas ouvidos pelo GLOBO nesta quarta-feira classificaram como inadequadas as publicações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro em relação a atos obscenos no carnaval de rua. Bolsonaro compartilhou na noite de terça-feira um vídeo em que dois foliões do Blocu, em São Paulo, praticavam o fetiche chamado de "golden shower" (chuva dourada, que envolve o ato de urinar no parceiro ou na parceira) ao ar livre — no dia seguinte, ele perguntou a internautas do que se tratava a expressão em inglês . Junto às imagens, o presidente fez ponderações sobre as manifestações carnavalescas e disse que era preciso "expor a verdade" sobre o que têm "virado muitos blocos de rua".
Segundo o jurista Miguel Reale Júnior, a publicação do post configura quebra do decoro e poderia até mesmo justificar um pedido de processo de impeachment do presidente. Em 2015, Reale foi um dos autores do pedido que levou à saída de Dilma Rousseff (PT) do cargo.
Para Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a postura do presidente revela uma falta de conhecimento dele sobre o cargo para o qual foi eleito em outubro do ano passado. O filósofo compara as postagens de Bolsonaro a declarações dos ex-presidentes Fernando Collor de Mello (que em 1991 disse que tinha nascido com "aquilo roxo") e Luiz Inácio Lula da Silva (em 2000, quando chamou a cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, de "exportadora de veados").
— Bolsonaro cometeu um atentado ao decoro público, ao decoro do cargo e da República brasileira. Foi um dos atentados mais violentos que um chefe de Estado já fez à moralidade pública. É ainda pior, para além das imagens, ele ter afirmado que esse comportamento é comum nas festas de carnaval do país. Ele atribuiu o comportamento de duas pessoas a milhões e milhões delas. Com que direito ele faz isso? — questiona Romano.
O especialista disse ainda que o presidente repetiu o comportamento do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, que em entrevista à revista "Veja" classificou turistas brasileiros no exterior como "canibais" que roubam objetos de hotéis e aviões.
— Um chefe de Estado não pode caluniar o próprio povo. A suposição de que todos o Brasil vive à beira de uma eclosão obscena não pode ser provada. Bolsonaro precisa ter cuidado com as próximas publicações, ou vai conseguir conquistar a antipatia da população — projetou Romano.
Liturgia do cargo
Professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em marketing político, Gaudêncio Torquato chamou a publicação de "lamentável" e disse acreditar que Bolsonaro até poderia tecer críticas ao carnaval, mas sem compartilhar as imagens. A publicação do conteúdo teria representado uma quebra da liturgia presidencial.
— O presidente tem que cumprir uma liturgia do poder. O cargo exige comportamentos e atitudes que contemplam a cena escatológica e pornográfica. Se ele tinha a intenção de mostrar que o carnaval tem práticas como essa, não poderia recorrer a esse fato dantesco — disse Torquato.
Para o profissional, o discurso de Bolsonaro vai contra à ideia que o próprio presidente costuma defender quando afirma que a socidade brasileira não pode se dividir em grupos maioritários e minoritários, mas sim ser tratada com unidade.
— A atitude dele acirra o discurso do "nós contra eles". Separa a socidade e faz com que nasçam mais barreiras entre grupos sociais — sustenta Torquato.
Impulsividade do clã
No campo do marketing político, Roberto Gondo, professor de Comunicação Política da Universidade Mackenzie, acredita que a atitude de Bolsonaro foi inadequada e desaconselhável mas está, em partes, coerente à estratégia que o presidente e os filhos têm adotado ao utilizar as redes sociais.
— O clã dos Bolsonaro têm apelado muito mais para a impulsividade, usa mais a emoção do que a razão. Na tentativa de agradar a um determinado grupo, o presidente acabou se posicionando de forma agressiva para um ocupante do cargo. Mas ele e os filhos sabem exatamente o caminho que as redes percorrem, tanto que abusaram disso durante a campanha eleitoral. Seria mentira dizer que são ingênuos quando adotam posturas como essa — defende Gondo.
O propósito de não demonstrar uma opinião equilibrada sobre o carnaval e outros inúmeros temas é, para o docente, um reforço da imagem responsável por conquistar a preferência do eleitorado e da expressiva base de admiradores bolsonaristas:
— A postagem o coloca ao lado dos eleitores mais cativos. Se ele deixar de posicionar como o "mito" que construiu, as pessoas podem identificá-lo como frágil. Dentro das percepções de comunicação estratégica, trata-se de um erro. Mas Bolsonaro nunca se vendeu como uma pessoa que busca o equilíbrio e tenta atender a todos os grupos — pontua Gondo.
Estado de degeneração
O assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Filipe Martins, saiu em defesa de Bolsonaro após das duas publicações. Ele comparou a postura do presidente a de Theodore Roosevelt (presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909).
"Roosevelt dizia que a Presidência da República é um 'bully pulpit', uma posição pública que permite falar com clareza e com força sobre qualquer problema. Foi o que o Presidente @jairbolsonaro fez ao expor o estado de degeneração que tomou nossas ruas nos últimos dias", escreveu Martins.
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