- O Estado de S.Paulo
Esse sistema seria um obstáculo às crises institucionais causadas pelo presidencialismo
Os fatos determinam o nascimento da lei. Muitas vezes demora. Os fatos repetem-se, exigindo nova realidade normativa. É da repetição, da reiteração, que o Legislativo se sensibiliza e muda o panorama normativo. Nas democracias é assim. A lei surge das realidades sociais retratadas pelos anseios populares.
Recordo o professor Miguel Reale, que lançou a didática e consistente teoria tridimensional do Direito: fato, valor e norma. Ou seja, em ocorrendo o fato, é ele valorado e, se valioso socialmente, nasce a norma. Nas democracias é assim para diferenciar os sistemas autoritários, em que a norma nasce muitas vezes da mente, da “cabeça” dos que comandam centralizadoramente. Para ficar na primeira hipótese, foi assim quando se convocou a Constituinte de 87/88. Quantas vezes delitos, ou seja, fatos cometidos com inaudita violência passam a ser catalogados como crimes hediondos. Foi assim quando os consumidores pleitearem proteção mais acentuada: fez-se o Código de Defesa do Consumidor. E outras centenas de exemplos.
Faço essas preliminares para tratar da modificação do sistema de governo. Não para já, porque o presidente, o vice-presidente e os eleitos do Legislativo o foram debaixo da ordem constitucional vigente. Portanto, deve-se pensar em 2022. E por que a proposta de modificação?
Porque os fatos estão se impondo naturalmente. Creio até que contribuí com eles. No meu governo trouxe o Congresso para governar com o Executivo. Alardeei que exercia um semipresidencialismo.
Foi essa fórmula, aliás, que me permitiu exercitar o governo com grandes e ousadas inovações, como a reforma trabalhista, a do teto dos gastos públicos, a reforma do ensino médio, a recuperação das estatais, a queda da inflação e dos juros a patamares civilizados. Ainda: com boa inserção internacional sustentando a tese do multilateralismo, que tem como exemplo positivo o recente acordo da União Europeia com o Mercosul. Revelando a integração Legislativo-Executivo, não foi pequena a participação dos presidentes Rodrigo Maia e Eunício Oliveira nos temas que acabei de apontar. Rodrigo trabalhou arduamente para buscar a aprovação, ainda em 2017, da reforma da Previdência. Que só não se deu, quando tínhamos os votos necessários, em razão de conluio entre um agente privado e um agente público.
Agora verifica-se dificuldade na relação entre Executivo e Legislativo a ponto de este último registrar que fará por conta própria as reformas da Previdência e tributária, naquilo que a imprensa tem chamado de “parlamentarismo branco”. Tudo indica, portanto, que está chegando a hora de entregar ao Legislativo participação expressa, transparente na execução das decisões governamentais. Não legislar apenas, mas executar. Partilhar com o Executivo a responsabilidade pela execução.
E isso só é possível com a adoção do semipresidencialismo, em que o presidente da República tem funções relevantes, como a chefia das Forças Armadas, o comando da diplomacia, a indicação do primeiro-ministro e mesmo o veto ou a sanção de certas matérias governamentais.
Devo comentar as vantagens políticas desse sistema de governo, que seria obstáculo às crises institucionais como as causadas pelo presidencialismo, em que os impedimentos presidenciais acarretam traumas políticos que prejudicam o País. Vivi esses momentos.
Saliente-se, como escrevi no meu Democracia e Cidadania (Ed. Malheiros, p. 43), que no Brasil o presidente é eleito pela maioria do povo, mas por uma minoria partidária. Depois é preciso costurar o apoio político congressual, o que acarreta inúmeras críticas aos partidos políticos e ao Legislativo.
Diria, sem medo de errar, que o Executivo e o Legislativo praticamente se antagonizam, na medida em que, de um lado, se exige a independência absoluta do Legislativo, como se este também não fosse “governo”, e, de outro, quando o presidente consegue montar sua base de apoio, ele o faz sob a acusação de fisiologismo e outras práticas condenáveis. Esquecem-se os que cobram independência integral do Legislativo que a Constituição também determina a harmonia entre os Poderes, o que significa trato institucional respeitoso e integrativo. Ainda, nunca é suficientemente respeitosa a relação dos partidos políticos e do Legislativo com o presidente e deste com aqueles. Mesmo quando a relação é com sua base de apoio. As intrigas vicejam, as brigas por espaços de poder são constantes, os partidos criticam o presidente e este crítica os partidos.
Veja-se que no presidencialismo se impõe a figura do articulador político, que deve fazer a interlocução do Executivo com o Congresso. Ora bem, no semipresidencialismo o primeiro-ministro, como chefe de governo, com sede no Parlamento, faz, naturalmente, essa articulação. Quando lhe falta a confiança do Parlamento, põe-se em pauta um “voto de desconfiança”. E se ele cai, naturalmente as forças políticas, com a participação do presidente da República, compõem um novo Ministério. Sem traumas. E sempre formando, naturalmente, maioria política.
Dir-se-á que já se tentou votar em plebiscito a adoção do parlamentarismo, por determinação de disposição transitória da Constituição. Não foi aprovada. Mas isso porque se levou à apreciação popular apenas a pergunta: você é a favor do parlamentarismo ou do presidencialismo? O eleitor não sabia de que parlamentarismo se tratava. Seria o inglês, em que o rei reina, mas não governa? Não.
Um projeto integral seria submetido a referendo em que se verificaria que tanto o presidente da República como o primeiro-ministro têm funções relevantes, ao modelo português ou francês. No passado, quando o ministro Gilmar Mendes era presidente do TSE, estudamos esse assunto e chegamos até a formatar um anteprojeto. Sei que a matéria é delicada, mas não se pode deixar de discuti-la, já que, a nosso ver, aperfeiçoa o sistema.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
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