- Folha de S. Paulo
Governo confirma a nossa vocação à insensatez
Como dizia o inesquecível Stanislaw Ponte Preta, “as três coisas mais perigosas na vida são croquete de botequim, mulher dos outros e arma de fogo”. Pois em todo o mundo avança o controle de armas, principal medida preventiva para reduzir a violência. Até mesmo a Suíça, celebrada pelos armamentistas, teve 63,2% do eleitorado exigindo controle no último plebiscito.
Trabalhando para a Nações Unidas no treinamento de policiais e militares de 19 países, pude constatar como essa política se expande, desde que foi proposta pela Conferência da ONU em 2001.
O Brasil vinha progredindo nesse sentido, diante do descalabro de ter 3% da população mundial, mas responder por 14% dos homicídios com arma de fogo. Enquanto o Japão, que proíbe o seu uso por civis, teve três homicídios dessa natureza em 2017, o Brasil registrou 47.500, média de 130 por dia. Mas nosso país reagiu, aprovando em 2003 uma lei de controle moderna e democrática, elogiada nos fóruns internacionais.
O Estatuto do Desarmamento fez desabar essa tendência. Se nos 14 anos anteriores à lei a média anual de crescimento desses homicídios era de 5,5%, nos 14 anos posteriores despencou para 0,85% —ou seis vezes menos, segundo Daniel Cerqueira, do insuspeito Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
As mortes violentas continuaram a crescer porque não se promoveu a reforma da polícia, dos presídios e do Judiciário e não se combateu com inteligência o crime organizado; mas, ainda assim, o estatuto tem funcionado como um dique.
Confirmando nossa vocação à insensatez, investindo no que não deu certo e acabando com os acertos dos governos anteriores, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) se esforça em revogar a medida que mais se mostrou eficaz no combate à violência, atropelando o Congresso com decretos inconstitucionais, liberando até mesmo a venda de fuzis para civis, o que nem a ditadura ousou.
Diante da reação do meio jurídico e do Parlamento em defesa do Estado de Direito, mudou de tática, e parlamentares da base do governo tentam aprovar medidas visando ferir de morte o estatuto. Não importa que 70% dos eleitores tenham se manifestado contra o porte de armas, segundo o Datafolha de julho passado.
Sem debate, sem audiência pública e com pressa, tentam reduzir a idade mínima para compra de arma de 25 para 21 anos, ignorando que jovens morrem quatro vezes mais que adultos; autorizar a compra de até 16 armas, sendo que 6 de uso militar, para os 170 mil CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), o que permitirá que imitemos os EUA, andando nas ruas com fuzil e atendendo ao interesse da voraz indústria de armas.
Para tirar o debate no Congresso do campo ideológico, e pautá-lo pelo conhecimento científico, estou lançando nesta quarta-feira (6), na Vila Madalena (Livraria da Vila), em São Paulo, “Armas para quê?” (ed. LeYa). A ideia é informar sobre os resultados de pesquisas realizadas sobre o tema.
Pergunta que fala por si: por que o lobby brasileiro das armas nunca faz pesquisa que fundamente sua tese de autodefesa? Na obra, discuto esses e outros aspectos, analisando com isenção os prós e contras do uso de armas por civis e o jogo sujo do lobby das armas nos bastidores do Congresso, contando pela primeira vez a história do controle de armas no Brasil e no mundo.
Combate-se a violência armada com inteligência, prevenção, repressão qualificada, controle de armas e negociação. Como diz Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”: “Falha a fala, fala a bala”.
*Antônio Rangel Bandeira, sociólogo e ex-consultor da ONU
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