Ex-presidente do Banco Central considera fundamental manter o teto de gastos e encaminhar reformas que garantam a sustentabilidade das contas públicas
Por Anaïs Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - Sem arrumar o cenário fiscal, o que inclui a manutenção do teto de gastos e o encaminhamento de reformas estruturais, o Brasil terá de conviver com juros longos mais altos, câmbio mais depreciado e, futuramente, risco inflacionário maior, alerta o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, sócio da A.C. Pastore & Associados. Apesar do aperto nas contas, ele disse ontem, em Live do Valor, ver espaço para um novo programa de transferência de renda que, remanejando benefícios atuais, seja fiscalmente sustentável e evite condições de pobreza. Pastore recomendou que o governo olhe para saídas do tipo e sugeriu que a sociedade faça pressão por isso.
O economista reforçou que o país foi “pego” pela pandemia em uma situação fiscal bastante vulnerável e, ainda assim, precisou aumentar gastos. Relativizando a importância da discussão sobre uma retomada econômica em “V”, Pastore, que é coordenador do Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace), afirmou que a atual recessão é a mais profunda da história do Brasil, mas também deverá ser muito curta, com dois trimestres, assim como na crise financeira de 2008-2009.
O auxílio emergencial foi muito importante para evitar uma queda ainda maior no consumo das famílias, o que beneficiou sobretudo o comércio - a trajetória dos serviços ainda gera incertezas, segundo ele. “Quando terminar a ajuda, se não tiver algo que a substitua, vai ter um problema no consumo”, disse. Ao mesmo tempo, Pastore considera que o programa tem um desenho “torto”, englobando mais do que aqueles de fato em situação de emergência e, assim, produzindo déficits maiores do que o necessário.
O cumprimento do teto de gastos está liberado neste ano, mas volta a valer no próximo. Com reformas, o país pode ganhar algum tempo para arrumar essas contas, disse Pastore. “Se aprovar uma reforma administrativa dura, aquela que pega todos os funcionários, você pode convergir para a consolidação fiscal mais devagar”, exemplificou. Se nada for feito, porém, haverá problemas, e, sem comprometimento com dívida externa, o “prêmio de risco” do Brasil aparece no câmbio e na “inclinação” da curva de juros, explicou ele.
De junho de 2019 até fevereiro deste ano, a curva era estável, com uma inclinação pequena, mas quando o BC cortou a Selic no contexto da pandemia, os juros longos deram uma “bruta empinada”, afirmou Pastore. Com a economia deprimida, seria difícil o movimento refletir risco de inflação. “Isso se chama risco fiscal”, disse. Mas se o país não acertar a parte fiscal e criar âncora, “é melhor se preparar para ver taxa de juros longa muito alta, câmbio mais depreciado e começar a aparecer, bem lá na frente, risco maior de inflação”, afirmou.
Segundo Pastore, uma depreciação cambial mexe no índice de preços ao produtor agrícola muito rápido e parte disso é transferido também rapidamente à alimentação no domicílio, que já avança 11,39% nos 12 meses até agosto. Se o câmbio ficar estável ao redor dos atuais R$ 5,30 pelos próximos seis meses, o repasse aos índices de preços é zero, observou. Se “brincar” de tirar o teto de gastos, disse ele, o câmbio pode fechar mais à frente perto de R$ 6. Isso é repassado aos preços, mexendo depois nas expectativas de inflação e produzindo inclinação adicional da curva de juros. Nesse cenário, mesmo com a economia deprimida, o BC pode se ver obrigado a subir juro. Assim, um choque que seria transitório pode se tornar algo mais persistente.
“Se por um caminho ou outro o teto for mantido, esse risco é pequeno. Se não for mantido, é um risco real”, disse Pastore.
Na sua avaliação, o governo é “confuso” na sinalização se vai cumprir ou não o teto e, se a preocupação for apenas com a eleição de 2022, a tendência é aumentar gastos. Fugir de questões meramente eleitorais também é importante, segundo ele, na busca por um novo programa de transferência de renda que respeite o teto.
Pastore reconheceu que “não é razoável” fazer política econômica sem pensar na distribuição de renda, muito desigual no Brasil. Segundo ele, houve ganhos nesse campo, mas “há muito para avançar”. Um dos diretores do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), Pastore mencionou programa elaborado por Vinícius Botelho, Fernando Veloso e Marcos Mendes, com apoio do CDPP, propondo a fusão do Bolsa Família ao salário-família, abono salarial e seguro-defeso. “Você endereça o objetivo de melhorar a distribuição, ter a extinção da pobreza extrema e, ainda, ficar dentro do teto.”
Ele disse que o governo deveria olhar para programas do tipo. “Deveria, de uma forma ou de outra, a sociedade fazer pressão na direção de que um programa assim fosse aprovado. É possível fazer, desde que se esteja pensando no brasileiro, no bem-estar da sociedade.”
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