Países
do continente tiveram de retomar medidas duras de restrição devido a recordes
de casos
No
início do ano, quando a Covid-19 se alastrava de forma dramática pela Europa, o
Brasil era um espectador do que estava por vir — poderia ter tirado vantagem
disso, mas não tirou. À medida que os meses foram avançando, o número de
infectados e mortos nos países europeus decaiu, enquanto no Brasil a curva da
doença entrou em escalada. Agora, os papéis novamente se invertem.
Depois
de controlar a doença, a Europa vive uma segunda onda de Covid-19. Países do
continente registraram recordes de casos diários desde o início da pandemia —
embora a mortalidade seja menor. Na tentativa de frear esse novo avanço do
vírus, tiveram de retomar medidas duras de restrição, como toques de recolher
na Itália, Espanha e França. No Brasil, ao contrário, as curvas estão em queda
ou estáveis em quase todos os estados. De modo geral, os números dos últimos
dias são os menores desde o início de maio.
Porém,
no Amazonas, a situação volta a preocupar. Na contramão de quase todo o país, o
estado vem registrando aumento no número de casos. Na capital, Manaus, uma das
cidades mais severamente atingidas, as UTIs já estão lotadas novamente, lembrando
a situação de meses atrás. Não há indícios de que a letalidade seja tão alta
quanto a da primeira onda, tanto pelo aprendizado no tratamento da doença
quanto pela proteção aos grupos mais vulneráveis. Mas as autoridades precisam
estudar o que acontece por lá. É fundamental saber os motivos da inflexão.
Alheios
ao que se passa no país, candidatos nas eleições de novembro ignoram a pandemia
e promovem aglomerações. Como mostrou reportagem do GLOBO, as próprias
campanhas publicam vídeos nas redes, demonstrando não ter vergonha de
desrespeitar os protocolos básicos de prevenção à doença. Não deveria
surpreender num país onde o próprio presidente Jair Bolsonaro nunca deixou de
provocar aglomerações, estender a mão a apoiadores e violar todas as normas
sanitárias.
Esses
atos de campanha evidenciam que políticos vivem num mundo à parte, desprezando
os anseios reais dos eleitores. Como podem prometer uma saúde melhor —
preocupação número um dos cidadãos segundo pesquisas de opinião — se não
conseguem respeitar os protocolos sanitários em meio à mais letal pandemia em
cem anos?
O
que acontece na Europa e em Manaus serve de alerta ao país e aos políticos
incautos. É fato que os números estão em declínio. Mas, a despeito do
comportamento de boa parte da população brasileira, que afrouxou as regras de
prevenção, a epidemia não acabou. Como ressalta a pneumologista Margareth
Dalcolmo na coluna “A Hora da Ciência”, no GLOBO: “Se observamos hoje uma
redução no número de casos no país, nos vemos estacionados em patamar alto de
transmissão, com mais de 20 mil casos e cerca de 500 brasileiros mortos por
dia, decorridos quase nove meses”. A Covid-19 pode ter dado uma trégua, mas,
enquanto hão houver vacinas de eficácia comprovada, o vírus circulará, não se
sabe por quanto tempo. Mais uma vez, a Europa hoje pode ser o Brasil amanhã.
Eleição
americana resgata a relevância do jornalismo profissional – Opinião | O Globo
Eventos
envolvendo denúncias contra Joe Biden revelam o limite das campanhas de
desinformação
Em
meio à expectativa que cerca a eleição americana, a novidade mais reveladora
não é o favoritismo do democrata Joe Biden. Nem a importância deste ou daquele
grupo demográfico para o resultado, nem a voz melíflua e roufenha da boataria
digital. O mais notável e decisivo na campanha eleitoral deste ano é o resgate
do protagonismo da imprensa profissional.
Se,
em 2016, as redes sociais tiveram papel indiscutível na vitória de Donald
Trump, em 2020 a história já é outra. Tão hábil quatro anos atrás para explorar
as notícias fraudulentas e os ataques ao jornalismo — até a agressão física a
jornalistas —, Trump enfrenta este ano uma dificuldade de outra grandeza.
É
o que demonstram os eventos envolvendo as denúncias frágeis contra Biden, que
jamais alcançaram repercussão comparável a acusações também frágeis sobre os
e-mails de Hillary Clinton ou os elos de Trump com russos em 2016.
Representantes da campanha de Trump, sob a coordenação de seu advogado Rudolph
Giuliani, entregaram ao “Wall Street Journal” um dossiê com acusações de que o
filho de Biden, Hunter, se beneficiara da posição do pai, então
vice-presidente, quando trabalhava na empresa ucraniana de gás Burisma — e de
que o próprio Biden auferira lucros na empreitada.
A
publicação por um veículo da grande imprensa era essencial na estratégia de
transformar a corrupção atribuída a Biden no tema central do último debate,
revelou o colunista Ben Smith no “New York Times”. Só que o “Journal” fez
jornalismo e, ao verificar as denúncias, constatou sem esforço sua fragilidade.
Como resultado, elas acabaram publicadas no tabloide “New York Post”, associado
ao trumpismo, e rapidamente caíram em descrédito.
Sem
aval do jornalismo profissional, as próprias redes sociais — Twitter e Facebook
— se viram obrigadas a reduzir a repercussão ou barrar as denúncias.
Independentemente da controvérsia despertada pela decisão, ela revela que as
redes parecem ter enfim se dado conta de que não podem espalhar informações de
impacto político sem saber se são verdadeiras. É esse, por sinal, o valor
cardeal do jornalismo.
Quando
Trump falou sobre o assunto no debate, só a audiência restrita dos sites de
desinformação trumpistas sabia do que ele estava falando. A moderadora Kristen
Welker não se furtou a exercer seu dever jornalístico e questionou Biden sobre
o tema. Assim como o “Journal”, que deu à reportagem não o ar de escândalo que
a campanha de Trump desejava, mas pôs em evidência as dúvidas sobre a
narrativa.
Para
a imprensa, é ao mesmo tempo um aprendizado valioso e sinal de um futuro
promissor constatar que sua principal missão e seu maior valor ainda estão em
fazer aquilo que sabe fazer melhor: jornalismo.
O valor estratégico da construção – Opinião | O Estado de S. Paulo
Para
se abastecer, a construção civil movimenta muitas outras indústrias. E também é
uma importante fonte de empregos
Vendas de imóveis crescem, aumentam os lançamentos, obras são iniciadas e sobe o índice de confiança dos empresários da área. Esses dados, especialmente animadores neste momento, contrastam com as incertezas sobre a economia em 2021. Se continuar avançando, o setor terá importante papel na sustentação da retomada. Para se abastecer, a construção movimenta muitas outras indústrias. A atividade requer produtos de aço, alumínio, cobre, plásticos, vidros, madeira e cerâmica, além de tratores, guindastes e outros tipos de máquinas e equipamentos. Também é uma importante fonte de empregos.
Juros
baixos e novas linhas de crédito vêm favorecendo os negócios
imobiliários. Na
capital de São Paulo foram vendidas 49.715 unidades nos 12 meses até setembro,
segundo o Sindicato da Habitação (Secovi-SP). O avanço foi de 12,7% em
relação a igual período de um ano antes. As vendas de setembro (5.147 unidades)
foram 18,9% menores que as de agosto, mas 19,2% maiores que as de igual mês de
2019. Os lançamentos em 12 meses chegaram a 56.646 unidades, com crescimento
anual de 1,3%, informou o Estado.
Com
a melhora dos negócios, o Índice
de Confiança da Construção subiu 3,7 pontos em outubro e atingiu 95,2,
de acordo com pesquisa mensal da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Foi o nível
mais alto desde março de 2014, quando o indicador atingiu 96,3 pontos. Mesmo
com a subida, no entanto, o índice ficou pouco abaixo da fronteira entre os territórios
negativo e positivo. A linha divisória é o nível 100.
Apesar
da cautela, o ganho de confiança captado na pesquisa é notável. “O ambiente de
negócios para as empresas do setor já é mais favorável que o registrado antes
do início do isolamento social determinado pela pandemia”, comentou a
responsável pela pesquisa, Ana Maria Castelo. “Enquanto o mercado imobiliário
está sendo impulsionado por taxas de juros historicamente baixas, a
infraestrutura se beneficia de investimentos das prefeituras e das recentes
mudanças regulatórias”, acrescentou.
Com
a reativação, o uso da capacidade instalada aumentou. Em abril havia chegado a
57,6%. A partir de maio avançou e atingiu em outubro 74,5%, nível superior ao
de qualquer mês do ano passado. Mas a recuperação do setor pouco afetou o
emprego nos primeiros meses de reação. É, no entanto, razoável esperar mais
contratações, se o setor continuar operando com dinamismo.
Executivos
da construção apontam problemas de abastecimento. Insumos têm escasseado e
custos tendem a subir, segundo fontes citadas na pesquisa da FGV e na
reportagem do Estado.
Se empresários derem espaço à elevação de custos e preços, poderão, no entanto,
frear a recuperação do setor, com perdas para as atividades imobiliárias e para
outros segmentos da economia. A tolerância ao encarecimento de insumos e dos
produtos finais poderá ser um grave erro estratégico.
Durante
algum tempo, os negócios com imóveis poderão sustentar-se com uma boa demanda
final, especialmente se os juros e demais condições de financiamento
continuarem favoráveis. Mas haverá limites para esse jogo.
Com
o tempo, adverte a pesquisadora Ana Maria Castelo, da FGV, as condições
financeiras serão insuficientes para garantir o avanço do setor imobiliário. Os
negócios com imóveis estarão associados, no médio e no longo prazos, a uma
recuperação econômica mais ampla. As vendas dependerão, depois da fase inicial,
de mais pessoas ocupadas e capazes de pagar as parcelas. O recado vale para o
Ministério da Economia. O setor imobiliário pode fortalecer o arranque, mas o
percurso duradouro dependerá de um ambiente mais próspero.
Não
há sinal, ainda, de um roteiro para atingir essa prosperidade. Pior: o
Executivo nem sequer explicou, até agora, como combinará a sustentação da
retomada econômica e a arrumação das contas desarranjadas na pandemia. Esse
desarranjo permitiu evitar uma crise maior, mas o rombo nas finanças públicas
aumentou, assim como a dívida. Será preciso dizer como será o conserto – e se
haverá apoio do presidente em campanha pela reeleição.
Um prêmio para a desordem – Opinião | O Estado de S. Paulo
De
que adianta todo o ordenamento da vida urbana, sem fiscalizar o seu
cumprimento?
A
vida é extremamente regulamentada em São Paulo, a maior cidade do País. Os 12,3
milhões de habitantes da capital paulista estão sujeitos a mais de 700 itens de
fiscalização contidos em leis, normas e regulamentos. Eles vão desde as regras
para descarte de entulho de obras até a prevenção de crimes ambientais,
passando pelo ordenamento do comércio de rua e a lei do silêncio. A todo este
arcabouço normativo, somaram-se os protocolos sanitários determinados neste ano
pela Prefeitura de São Paulo para conter o avanço do novo coronavírus. Mas,
afinal, de que adianta todo esse ordenamento da vida urbana se não há quem
fiscalize o seu cumprimento?
Com
base na Lei de Acesso à Informação, o Estado obteve dados que mostram que entre 2017
e 2020 houve uma queda contínua do número de fiscais – ou “agentes vistores” –
em atividade nas 32 Subprefeituras da capital paulista. Hoje, apenas 352
fiscais cobrem os 1,5 mil km² de área da cidade, e 182 deles trabalham em casa
em decorrência da pandemia de covid-19. Eram 543 fiscais em 2013 e 467 em 2016,
donde se conclui que, a ser mantido esse ritmo, 2021 não se avizinha
alvissareiro.
Em
quase todas as Subprefeituras de São Paulo houve queda no número de fiscais
lotados em 2020. Registrou-se um pequeno aumento em relação aos anos de 2013 e
2016 apenas em Parelheiros, Guaianases e Sapopemba, onde até este ano não havia
fiscal, de acordo com o levantamento do jornal.
Essa
quantidade de agentes vistores pode ser suficiente para fiscalizar com algum
rigor o cumprimento de normas de um município de médio porte, mas nunca de uma
megalópole como São Paulo. Ao fim e ao cabo, uma cidade incapaz de fiscalizar o
cumprimento de seu ordenamento urbano é uma cidade sem lei, uma cidade em que
prevalece a conveniência do munícipe em cumprir ou não determinado comando. É
um prêmio à desordem.
Evidentemente,
a maioria dos paulistanos é cumpridora das leis e regulamentos estabelecidos
pelas autoridades municipais. Mas não se pode contar apenas com o senso cívico
desses cidadãos. Desvios de conduta são inevitáveis em uma cidade como São
Paulo e a Prefeitura deve dar conta de coibi-los para impedir o caos.
Além
de serem poucos, os fiscais estão mal distribuídos pela cidade. O Estado apurou que há 30
agentes vistores lotados no centro da cidade. Em bairros nobres, como a Vila
Mariana, na zona sul, há 17 fiscais. Na Lapa, na zona oeste, há 18 agentes
(eram 25 em 2013). Já em Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital
paulista, há apenas 4 fiscais da Prefeitura. Essa discrepância funcional se
reflete na aplicação de multas pelo descumprimento das normas municipais.
Enquanto na Vila Mariana houve 1.579 autuações no ano passado, houve apenas 16
em Cidade Tiradentes. No local, a alguns passos de distância da Subprefeitura,
é possível ver lixo acumulado nas ruas, muros caídos e outras infrações que
põem em risco a segurança das pessoas.
As
áreas mais vulneráveis da cidade, do ponto de vista social e econômico, são as
que mais sofrem com a falta de fiscalização. Essa discrepância na distribuição
dos agentes da Prefeitura amplia, quando não perpetua, um inaceitável estado de
vulnerabilidade, como se os habitantes dessas regiões fossem menos paulistanos
do que os demais. “O que preocupa mais ainda é verificar que a dinâmica de
abandono dos bairros de maior vulnerabilidade social também se aplica (em relação à fiscalização)”, disse
o coordenador do Laboratório Arq.futuro de Cidades do Insper, Tomas Alvim.
A
precarização do trabalho dos agentes vistores em São Paulo – que nem sequer
possuem uma frota própria para exercer seu trabalho – não condiz com o
orçamento da cidade e menos ainda com sua condição de cidade mais desenvolvida
do País. Editar boas normas que têm por fim tornar a vida na cidade mais
harmônica e saudável para todos os cidadãos e não fazer valer seu cumprimento é
a desmoralização da administração pública.
A saúde na cidade – Opinião | O Estado de S. Paulo
Apartidário
e prático, documento é uma excelente pauta para os novos prefeitos
O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), em parceria com o Instituto Arapyaú e Impulso, lançou a Agenda Saúde na Cidade, com dez propostas no âmbito municipal para a atenção básica, no período de 2021 a 2024. Baseado nas dificuldades de profissionais de saúde e de gestores que trabalham na assistência direta ao cidadão, o documento tem por objetivo apresentar propostas não apenas tecnicamente corretas, mas factíveis e politicamente viáveis. Os próximos quatro anos são especialmente desafiadores, tanto pelas restrições fiscais como pelas novas demandas causadas pela pandemia de covid-19.
Como
diz o documento, “saúde é, por definição, um problema complexo, cujo
aprimoramento do sistema é fundamentalmente uma longa viagem de descoberta,
para a qual não há solução simples nem tecnologia conhecida”. Ao mesmo tempo,
lembra que existem muitas evidências a apontar os principais problemas e as
melhores práticas para a saúde pública.
Ao
traçar um diagnóstico sobre a saúde nos municípios, o documento destaca três
pontos. Em primeiro lugar, verifica-se uma carga heterogênea de doenças. Há
localidades com grande mortalidade por doenças infecciosas e crônicas e por
causas externas. Como segundo ponto, a atenção básica no País é ainda pouco
resolutiva, o que agrava os problemas de saúde da população, com óbitos e
doenças que poderiam ser prevenidos. Tal quadro é reforçado pelas desigualdades
regionais relativas à força de trabalho da área de saúde.
Em
terceiro, a pandemia de covid-19 revelou muitas vulnerabilidades do sistema de
saúde. Por exemplo, os municípios não foram capazes de manter as atividades de
rotina de atenção básica e, ao mesmo tempo, responder à crise sanitária em suas
diversas frentes, também no quesito comunicação com a população.
Diante
desse panorama, a Agenda
Saúde na Cidade traz como primeira proposta a implementação de
uma atenção básica mais resolutiva, que seja capaz de tratar de até 80% dos
problemas de saúde da população. É o primeiro passo para aumentar a eficiência
do sistema de saúde.
A
segunda proposta é melhorar a regulação em saúde para acabar com as filas nos
locais de atendimento. Sendo o principal fator de insatisfação dos usuários do
SUS, as longas filas podem ser extintas com boas práticas de gestão e melhora
de processos. Em terceiro lugar está o aumento da cobertura de atenção básica,
em especial a ampliação do Programa Saúde da Família. Reconhecidamente eficiente,
o programa tem resultados muito positivos para a saúde materna e infantil e o
acompanhamento de doenças crônicas.
Em
seguida, estão propostas voltadas diretamente para a gestão pública, como
contratação de insumos e de profissionais orientada a resultados; organização e
profissionalização de serviços, medicamentos e práticas na atenção básica;
monitoramento efetivo da saúde pelos gestores; treinamento e capacitação da
força de trabalho da área de saúde. O documento lembra uma realidade fundamental,
praticada com sucesso em muitos países e tantas vezes esquecida por aqui: “O
aumento do escopo de práticas da enfermagem amplia a produção de serviços de
saúde”.
A Agenda Saúde na Cidade propõe
também aumentar a capacidade epidemiológica para o enfrentamento das principais
causas de morbidade e aumentar a equidade no acesso ao direito à saúde. A
décima proposta refere-se à necessidade de uma política de promoção de saúde,
possibilitando cuidar da saúde, e não da doença. Medidas de promoção de saúde
garantem uma população mais saudável, com menos incidência de fatores de risco
e de doenças.
Apartidário
e prático, elencando ações para cada uma das dez propostas, o documento é uma
excelente pauta para os novos prefeitos. “A redução da mortalidade infantil, a melhora
no manejo das doenças crônicas e o aumento da expectativa de vida de todos não
são problemas da esquerda ou da direita, mas respondem a um conjunto de
aspirações comuns a todos os brasileiros”, lembra o documento. Um bom prefeito
pode fazer muito pela saúde da cidade.
Vacina com ciência – Opinião | Folha de S. Paulo
Tese
bolsonarista contra obrigatoriedade se ampara em polarização falaciosa
O
comportamento de Jair Bolsonaro na pandemia desviou-se em tudo do que se exige
de um líder. Minimizou a ameaça da Covid-19, sabotou o distanciamento social,
propagandeou falsas curas, manietou o Ministério da Saúde e, agora, precipita
e politiza um debate sobre a obrigatoriedade da vacinação.
Bolsonaro
negligencia dever básico em matéria de saúde pública, a precaução. Não há ainda
vacina com níveis de segurança e eficácia conhecidos, informação imprescindível
para desenhar qualquer plano de imunização, mas o presidente palpita numa
discussão que deveria ser fundada na ciência.
O
mandatário que já desautorizou três ministros da Saúde em plena epidemia não se
peja de buscar dividendos políticos onde não devia. Criou-se, com isso, uma
polarização descabida e falaciosa do tema, como se estivesse em pauta uma
oposição entre liberdade pessoal e opressão estatal.
Declarar
a obrigatoriedade de imunização não está apenas previsto em legislação
sancionada pelo próprio Bolsonaro. Justifica-se, igualmente, pelo princípio de
que um indivíduo não tem o direito de ameaçar a vida de outro. Trata-se da
fixação de regras para promover o bem-estar coletivo.
O
bom senso da população já assimilou, por exemplo, normas que proíbem o fumo em
recintos públicos. Ninguém em sã consciência questiona cintos de segurança que
tornam acidentes veiculares menos graves e acarretam economia de recursos do
SUS.
Quanto
a vacinas, não há novidade. Já existem no país as obrigatórias para crianças e
adolescentes, estando os pais sujeitos a sanções em caso de descumprimento.
Faltam
até aqui elementos para definir se a futura prevenção contra a Covid-19
precisará ser obrigatória ou não. Caso um dos imunizantes em teste se mostre
100% eficaz (uma raridade), todos que o aceitassem estariam protegidos dos
trânsfugas que, por desconhecimento ou obtusidade ideológica, se recusassem a
recebê-lo.
Não
parece o caso, porém. Há também indícios de que anticorpos contra o coronavírus
decaem com o tempo, o que talvez demande doses de reforço ou mesmo campanhas
periódicas de vacinação.
Tornar
a vacinação obrigatória não corresponde, como querem fazer crer seguidores
fanáticos do bolsonarismo, a invadir residências ou deter indivíduos nas ruas
para aplicar injeções à força.
O
Estado dispõe de meios para fazê-la valer, de campanhas de esclarecimento para
setores específicos a incentivos inteligentes, como condicionar o uso de
serviços públicos e o retorno às escolas a provas de imunização. Trata-se de
responsabilidade básica, que nenhum governante pode ignorar.
Pária com orgulho – Opinião | Folha de S. Paulo
Com
asneiras, chanceler Araújo faz defesa do retrocesso da política externa
O
ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, habita uma realidade
paralela. Enquanto no mundo as conexões internacionais constituem um sistema de
trocas e interdependência, no qual instituições multilaterais atuam para
dirimir conflitos, o chanceler brasileiro dedica-se a enfrentar moinhos de
vento e tigres de papel.
Em discurso
durante cerimônia de formatura de uma turma do Instituto Rio Branco, o
ministro, em esforço retórico para defender o governo Jair Bolsonaro e a si
mesmo, cometeu a proeza de declarar que, se a atual política externa “faz de
nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
Assombrado
por miragens ideológicas da Guerra Fria, Araújo acredita que o objetivo de sua
gestão é salvar a pátria das garras do marxismo globalista, ateu e corrupto.
Em
seus desvarios, o chanceler afirmou na cerimônia que o presidente Bolsonaro e
seu colega e modelo norte-americano, Donald Trump, teriam sido “praticamente os
únicos” líderes mundiais a falar em liberdade na abertura da Assembleia Geral
das Nações Unidas, em setembro.
Ao
mesmo tempo em que fazia referência velada ao governo ditatorial da China, um
de seus inimigos prediletos (e maior parceiro comercial do Brasil), o ministro
gabou-se de ter fechado acordos comerciais com países como a Arábia Saudita,
nação submetida a regime monárquico absolutista.
Araújo
encontrou espaço para atacar o diplomata e poeta João Cabral de Melo Neto
(1920-1999), escolhido pelos formandos como homenageado da turma. O autor de
“Morte e Vida Severina”, pontificou o orador, teria se voltado “para o lado da
esquerda”, a favor de “um Brasil sem patriotismo”.
Ao
mesmo tempo, o chanceler dá as costas para as evidências de que o país tem
colhido péssimos resultados na área externa.
Afora
a destruição do soft power que o Brasil acumulou em décadas, com base em sua
diplomacia equilibrada, em sua pujança cultural e em seus esforços ambientais,
Araújo sabota o que deveria ser o objetivo primeiro de sua pasta —servir de
facilitadora para a conquista de mercados e a inserção do país nos fluxos de
comércio global.
Exemplo
clamoroso dessa situação é a recusa de países europeus em ratificar o acordo
com o Mercosul —caberia perguntar se a culpa é da desastrosa política ambiental
em curso ou do suposto avanço do comunismo internacional.
Flávio pede ajuda do governo federal contra investigações – Opinião | Valor Econômico
Ainda
que Bolsonaro queira enterrar o assunto, a forma de fazê-lo pode jogar o
escândalo nas costas do Palácio do Planalto
O
senador Flávio Bolsonaro não é um homem comum. Filho do presidente da
República, Jair Bolsonaro, está se valendo dos poderes de que seu pai dispõe
para encontrar rotas de fuga das investigações nas quais é suspeito de comandar
“rachadinhas” quando era deputado estadual, ao lado do inefável Fabrício
Queiroz, preso na casa do advogado do presidente, Frederick Wassef. Ao longo
das investigações, foram descobertos, por exemplo, depósito de R$ 89 mil na
conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
A
defesa do senador, acusado de peculato, lavagem de dinheiro e de liderar a
formação de quadrilha - entre 74 suspeitos, dez deles deputados estaduais -,
segue sempre o mesmo padrão: questionar procedimentos dos órgãos de
investigação sem dar respostas para os fatos que o comprometem. A estratégia
enveredou agora por caminhos perigosos - a tentativa de uso dos poderes de
órgãos da República para invalidar todo o processo. O presidente Bolsonaro,
segundo a revista Época, que reportou as andanças da defesa de Flávio pelos
gabinetes oficiais e fora deles, intercedeu junto à Receita para que fornecesse
com rapidez os pedidos feitos pelos advogados do filho.
Em
julho de 2019, as alegações da defesa de Flávio de que houve quebra ilegal de
seu sigilo bancário levaram o então presidente do Supremo Tribunal Federal,
Dias Toffoli, a suspender todas as investigações com base em dados do Coaf e da
Receita que não tivessem respaldo de autorização prévia do Judiciário. Depois,
por 9 a 2, o plenário do STF considerou válido o procedimento que, se revogado,
tornaria inútil o Coaf. Não houve erro de procedimento.
O
senador conseguiu em seguida que o foro que o julgaria não seria o do Rio de
Janeiro, o que naturalmente ocorreria com o fim de seu mandato de deputado. Uma
decisão incomum do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro enviou o processo, por
Flávio ter prerrogativa de foro, para um conjunto de magistrado na segunda
instância.
A
prisão de Fabrício Queiroz marcou a inflexão do presidente Jair Bolsonaro em
direção ao Centrão à procura de uma base parlamentar, que se recusava a
construir, e à moderação nos ataques ao Judiciário. As investigações seguem seu
curso e continuam produzindo fatos desagradáveis, como o cheque na conta da
primeira-dama, ou levantamentos, como o da Folha de S. Paulo, que indicam que
Bolsonaro, nos 28 anos como deputado federal, pode ter feito o mesmo que
Flávio, ao reduzir e aumentar de um dia para outro os salários dos
funcionários, ou demiti-los e recontratá-los sem qualquer lógica aparente.
Flávio
abriu as portas do Estado para seus advogados, baseado na influência que tem
como filho do presidente. Sua defesa solicitou, segundo Época, uma relação de
funcionários, com nome, CPF e locação, que tiveram acesso aos dados do senador
e sua mulher, Fátima Bolsonaro. Houve um encontro fora das dependência da
Receita, em setembro, onde Flávio e advogados cobram as informações do
secretário da Receita, José Tostes Neto. Em seguida, o presidente Jair
Bolsonaro teria inquirido Tostes a respeito e solicitado rapidez na entrega dos
dados.
Os
advogados bateram também às portas do GSI, e se reuniram com o general Augusto
Heleno e Alexandre Ramagem, diretor-geral da Agência Brasileira de
Inteligência, o escolhido do presidente para ocupar a direção da Polícia
Federal. Os advogados argumentaram que o assunto implica risco à estabilidade
institucional, pela investigação ter sido “praticada contra um membro da
família do presidente da República”.
A
estratégia procura desmoralizar os órgãos de investigação. Além de pôr em
dúvida a legalidade da obtenção dos relatórios de inteligência, a defesa de
Flávio sugeriu ter descoberto “organização criminosa instalada na Receita
Federal” que teria desencadeado o processo contra o senador. Se com uma ajuda
do governo isso fosse provado, a outra organização criminosa, a das
“rachadinhas”, e todos os nela envolvidos ficarão livres do escrutínio
policial, assim como Fabrício Queiroz.
Ao colocar os filhos sempre em primeiro lugar, o presidente pode se complicar, caso seus comandados em órgãos de investigação e na Receita participarem de operação que beneficia Flávio. O presidente pode ferir os preceitos da impessoalidade e da publicidade. Ainda que Bolsonaro queira enterrar o assunto, a forma de fazê-lo pode jogar o escândalo nas costas do Palácio do Planalto e abrir nova crise institucional.
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