Brasil
não precisa que o STF entre numa guerra da vacina
Com
quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da
gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa
que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para
trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em
1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na
manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando
políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que
na saúde pública.
O
presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua
propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram
para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar
da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha:
“Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima
de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não
existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.
O
capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário
estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal
interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado
ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para
isso.
Pode-se
discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da
vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que
vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia
para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros
gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.
O
quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua
independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do
quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem
decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa
dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid.
Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se
vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?
A
criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode
atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional.
Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar
regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar
que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra.
Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.
Tudo
indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os
ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição.
Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a
Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.
Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.
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