Três
narrativas em 2021: desaceleração com o fim do auxílio, retomada com vacinação
e choque temporário da inflação
De
acordo com o dicionário Merriam-Webster, uma narrativa é “uma forma de
apresentar ou compreender uma situação ou série de eventos que reflita e
promova um particular ponto de vista ou um conjunto de valores específicos”.
Essa definição está no instigante livro de Robert Shiller, “Narrative
Economics” (Princeton University Press, 2019). Como indica o título, o livro é
uma grande análise das narrativas econômicas, que expande a palestra proferida
no encontro de 2017 da Associação Americana de Economia (bit.ly/38mq5SX). Nesta, o
autor observa que o “cérebro humano tem sido sempre altamente sintonizado com
narrativas, factuais ou não, para justificar ações em curso, mesmo ações tão
básicas como gastos de consumo e investimentos. Histórias motivam e conectam
atividades a valores e necessidades profundamente enraizadas”.
O
objetivo de Shiller é construir um referencial teórico sobre como as narrativas
influenciam o comportamento dos agentes econômicos e como isso, por sua vez,
determina o que ocorre na economia. A obra que se encaixa, portanto, no campo
mais amplo da Economia Comportamental, a cujos conceitos Shiller recorre em
diferentes partes do livro. É o caso, por exemplo, do conceito de “framing”,
que enfatiza a influência da forma como as coisas são apresentadas (“framed”)
nas decisões tomadas pelos agentes econômicos.
De fato, uma narrativa nada mais é que uma forma de apresentar e organizar as informações que circulam em certa comunidade, sejam elas verdadeiras ou não. Ou, como define o próprio Shiller, “narrativas são construções humanas que são misturas de fato, emoção, interesse humano, e outros detalhes estranhos que formam uma impressão na mente humana”.
Ao
contrário do que ocorre nos trabalhos mais tradicionais de Economia
Comportamental, porém, o foco de Shiller é a macroeconomia e, em especial, os
ciclos econômicos. Assim, como ele coloca, “uma proposição chave deste livro é
que as flutuações econômicas são substancialmente impulsionadas pelo contágio
de variantes simplificadas e facilmente transmissíveis de narrativas
econômicas. (...) Como com as epidemias de doenças, nem todos ficam infectados.
(...) Mas em uma epidemia histórica, para a maioria das pessoas a narrativa
será fundamental para suas razões para fazer, ou não fazer, coisas que afetaram
a economia”.
Assim,
a estrutura de análise utilizada no livro é: surge uma narrativa econômica que
organiza ou confirma ideias e sentimentos ou paixões que flutuam na sociedade.
Essa narrativa em algum momento é expressa publicamente por uma celebridade e
isso gera um surto semelhante ao de uma epidemia, fazendo a narrativa se
espalhar e influir no comportamento de um número grande o suficiente de pessoas
para afetar o que ocorre na economia.
O
livro ilustra esse argumento com diferentes exemplos, incluindo bolhas e
recessões. Mas a proposta central não é tanto identificar e analisar narrativas
que ajudem a entender fenômenos históricos, mas sim propor que uma metodologia
como essa ajudaria a prever o que vai ocorrer à frente. Ou seja, que ao pensar
o futuro não devemos olhar apenas preços e restrições econômicas, mas também as
narrativas que podem vir a moldar o comportamento dos agentes econômicos.
Pensando
no Brasil, por exemplo, eu enxergo três narrativas que podem exercer esse tipo
de influência em 2021. Uma é que o fim do Auxílio Emergencial levará a uma
significativa desaceleração da economia. Essa narrativa já parece influenciar a
confiança de consumidores e empresas, o que pode levar a uma profecia
auto-realizável, se desencorajar compras e investimentos. O Congresso, porém,
parou de discutir a extensão do Auxílio, o que diminuiu a frequência com que o
tema aparece na imprensa e isso vai enfraquecer a propagação dessa narrativa.
Uma
segunda narrativa, na direção contrária, é a da recuperação econômica que virá
com a vacinação e o controle da pandemia. Esta ainda é, por ora, uma narrativa
do mercado financeiro, mas ela deve se disseminar conforme a primavera chegue
no Hemisfério Norte. Veremos muitas histórias de consumo e, penso, uma
narrativa se desenvolverá de que é justificado “exagerar” no consumo no pós
pandemia, em especial de serviços.
A
terceira narrativa diz respeito à alta dos preços. O Banco Central (BC) tomou a
dianteira, argumentando que os 6% de inflação esperados para meados de 2021 são
um choque temporário. Esse é um exemplo de algo que Shiller não enfatiza, mas
que é uma conclusão direta de sua análise: que a construção e disseminação de narrativas
é uma forma como o governo pode fazer política pública. Ainda que pense que o
BC está certo em propor essa narrativa, acredito que ele enfrentará uma forte
corrente de narrativas contrárias, já iniciadas por celebridades do mercado
financeiro, que reportam uma maior preocupação com o controle da inflação em
2021. Preocupação para a qual vão concorrer, no segundo semestre, as pressões
advindas da retomada do setor de serviços.
2020
foi um ano muito difícil para todos. Que o Natal e 2021 nos tragam muita
felicidade. Sem receio de exagerar!
*Armando
Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da
Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
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