Se
há algo que o Brasil bem fazia, era vacinar
A
agenda do combate à corrupção culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro.
Trata-se de agenda negativa pois, mais do que propor um programa de governo,
alardeia a necessidade de limpar o país. Um dos equívocos dessa agenda (não o
único) está na suposição de que, feito isso, o resto se resolve sozinho, ou
quase.
Contra “a roubalheira do PT”, o que alguns definiram como uma “escolha difícil” foi, para outros, uma decisão fácil: “Bolsonaro e os militares, pelo menos, não são corruptos”, diziam. Que o republicanismo não é atributo dessa turma já ficou evidente na tour de force em defesa do clã Bolsonaro e suas rachadinhas, bem como nas benesses concedidas a militares pela atual gestão - por exemplo, ganharam um novo plano de carreira, enquanto outros foram agraciados com a reforma previdenciária; e asseguraram um cabideiro de empregos federais suficiente para toda a seção de roupas da Riachuelo. Claro, sem esquecer do casamento tardio com o Centrão, apesar de todas as invectivas bolsonaristas e militaristas contra o que se chamava de “velha política”. Foi noutro dia que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, cantarolou: “E se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão...”.
Se
o combate à corrupção definitivamente não é objetivo desse governo, o que lhe
resta? Talvez a agenda liberalizante de Paulo Guedes, diriam. Quanto a essa,
durante o primeiro ano, o que avançou em termos de reforma se deveu não ao
Executivo (que, quando muito, não atrapalhou), mas ao Congresso e, em especial,
à coalizão legislativa liderada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Um
número interessante diz respeito ao plano de privatizações: o governo
Bolsonaro, com Salim Mattar à frente, privatizou menos do que a gestão petista
de Lula, no mesmo espaço de tempo. Isso significa.
Se
não é corrupção, nem economia, é preciso procurar noutros lugares. Certamente o
governo levou adiante seus objetivos nas áreas ambiental (com a devastação
promovida por Ricardo Salles), cultural (com o desmonte das políticas e a
captura ideológica e sectária dos órgãos do setor), da violência (com a
facilitação do armamento popular e a dificultação do rastreio de armas e
munições), da política externa (com a transformação do Brasil num pária
internacional e a multiplicação por mais de 17 vezes do gasto em publicidade
governista no exterior), de direitos humanos e participação cidadã (com o
desmonte dos órgãos participativos na administração federal, assim como o
ataque a políticas de ação afirmativa e proteção a grupos vulneráveis), na
educação (com o vilipêndio da autonomia universitária, nomeando-se dirigentes
estranhos ao processo legal de escolha) e na saúde, pela sabotagem a políticas
de combate à pandemia e pelo aparelhamento militarista do Ministério e da
Anvisa.
Nota-se
que temos, portanto, um governo que em vez de promover uma agenda positiva de
políticas e reformas institucionais, opera para destruir o que foi longamente
edificado. Não digo aqui construído desde o início da redemocratização, pois
mesmo políticas e instituições geridas anteriormente a ela, obras inclusive dos
governos da ditadura militar, têm sido devastadas.
Tendo
em vista a situação que vivemos, em meio à pandemia, um aspecto merece
destaque. O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, acompanhado
na pasta por seu exército de Brancaleone, tem conseguido a proeza de perturbar
o funcionamento de uma das políticas sanitárias mais bem sucedidas do mundo em
desenvolvimento e, por isso mesmo, uma das iniciativas mais longevas e
positivas dos governos militares: o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que
remonta ao governo de Ernesto Geisel (aquele presidente que considerava
Bolsonaro um “mau militar”).
O
PNI foi edificado a partir da bem-sucedida Campanha de Erradicação da Varíola
(CEV), que operou sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS, esse
órgão “globalista”, no léxico olavista do chanceler Ernesto Araújo) e da
Organização Pan-americana da Saúde (Opas, um órgão que bolsonaristas creem
estar a serviço da Cuba comunista). Essa campanha visava retirar o Brasil da
condição de último país das Américas em que a varíola ainda era endêmica e foi
levada a cabo pelo presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro
mandatário do regime militar.
Embora
artífice de uma ditadura fardada, Castelo e seus companheiros percebiam a
importância de cooperar com organismos internacionais e combater doenças por
meio da vacinação. Hoje, Bolsonaro, Pazuello e seus colegas de armas sabotam
diuturnamente a vacinação. Ora pelas dúvidas lançadas pelo presidente sobre a
necessidade ou a segurança de imunizantes desenvolvidos pela comunidade
científica mundo afora; ora pela barbeiragem logística capitaneada por
Pazuello, incapaz de adquirir seringas e agulhas para mais do que 2% da
necessidade. E há ainda as declarações do presidente, afirmando que não se
vacinará, ou do general da saúde, afirmando que não é preciso ansiedade diante
de uma doença que (em conta subestimada) já dizimou 200 mil brasileiros e, nos
últimos dias, abate mais de mil cidadãos a cada 24 horas.
Tendo
em vista nosso histórico, expertise e estrutura (assegurada a partir de 1988
pelo SUS) em políticas de imunização, o Brasil deveria estar entre os primeiros
países do mundo a iniciar a vacinação de seus habitantes. É difícil imaginar
que qualquer um dos concorrentes de Bolsonaro em 2018 fosse capaz de tamanha
proeza: procrastinar deliberadamente o início da vacinação num país que, desde
os anos 1970, é exemplo internacional de boas políticas nessa área.
Em
consonância com a agenda destruidora nos demais setores (apontados acima), a
desconstrução que se opera na saúde, de forma geral, e nas políticas de
imunização, particularmente, é o que melhor caracteriza o governo de Bolsonaro
e seus generais.
Não
se trata apenas de incompetência, embora se trate também dela; o que vemos
levado a cabo por esse governo é um claro projeto de destruição.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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