Se
brasileiro perder, narrativa do inconformismo está pronta; republicanos pagam
preço na Geórgia
A derrota do
Partido Republicano na Geórgia, tirando da sigla o controle do
Senado e entregando um Congresso mais amistoso para o governo Joe Biden, é um
conto cautelar acerca dos limites do populismo da cepa Trump.
Não
só deles: antecipa, a insurreição estimulada pelo presidente na frente do
Capitólio e nas ruas de Washington, a tática no forno de Jair Bolsonaro caso
perca o pleito em 2022.
Particular,
a variante trumpista do populismo agregou lições dos eurocéticos britânicos, da
extrema direita anti-imigração europeia e de líderes autocráticos como o russo
Vladimir Putin, mas
trouxe consigo a estridência isolacionista das entranhas dos EUA.
Aproveitando
o solo semeado pelo movimento Tea Party, de rejeição à globalização e com
fortes cores conspiratórias, Donald Trump emergiu para sua surpreendente
vitória em 2016 e inspirou seguidores no mundo todo. Hoje, o que ocupa o
principal posto se chama Bolsonaro.
Assim,
o fracasso republicano no Sul dos EUA, ainda que tenha de ser relativizado
pelas margens estreitíssimas da vitória democrata, é o preço pago pelo partido
por manter-se mais ou menos fiel a Trump até o fim.
Isso
porque o fim, para o presidente americano, não tem nada menos do que o tom
sombrio do "Götterdämmerung" (crepúsculo dos deuses) wagneriano levado por
Hitler a seu bunker em 1945. A democracia americana viu cenas
inacreditáveis em pleno 2021.
Só que o desespero aqui é acrescido do tom burlesco que marca Trump, diluindo o resultado num pastiche quando tudo acabar, ou assim se espera. O que não quer dizer que não haja perigos reais, a começar pelo confronto que pode degringolar nas ruas.
Se
parece exagero ver riscos institucionais ou para a paz mundial, cabe atentar à
carta assinada por dez ex-secretários de Defesa ainda vivos. Com poucas meias
palavras, eles mandam Trump parar de alimentar o mito da
eleição fraudada e de namorar ideias de ruptura.
Tudo
ocorre à luz do dia, ou quase: Trump tenta manipular a recontagem de votos
presidenciais na mesma Geórgia e vocifera, dia sim e outro também, que está
sendo vítima de um roubo. Aliados próximos sugerem
coisas como a decretação da lei marcial para manter o sujeito
no cargo.
Ao
dizer claramente que militares devem evitar se misturar a isso, o texto dos
ex-secretários também remete à escalada militar no golfo Pérsico, percebida por
um acuado Irã como o risco de um conflito para tentar bagunçar
os dias finais do mandato de Trump.
Próceres
do conservadorismo americano como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, arquitetos das
guerras do 11 de Setembro, estavam entre os signatários. Republicanos de quatro
costados, simbolizam o afastamento do coração do partido de Trump.
O
próprio vice-presidente Mike Pence, que constitucionalmente comanda a
sessão do Congresso que contará simbolicamente os votos da eleição vencida por
Biden, escreveu uma carta histórica, rejeitando a
pressão feita pelo chefe para que desconsiderasse votos
contestados na eleição.
Ele
simplesmente não pode fazer isso, mesmo que quisesse. Ainda assim, Trump fez um
discurso igualmente histórico, pela infâmia, implorando a Pence que
descumprisse a Constituição.
Ciosos
de que isso não daria certo, os republicanos ainda trumpistas impõem patranhas
para tentar melar a sessão da confirmação de Biden. Foi quando a turba resolveu
intervir e interromper o trabalho do Legislativo.
O
dano aos republicanos na Geórgia sela ao menos um racha na sigla, com a
repreensão às manobras contra os resultados no Arizona por figuras mais
graduadas do partido.
Isso
antevê a disputa que se dará para tentar juntar os cacos para os pleitos
seguintes, se é que Trump não acabará saindo preso da Casa Branca —ele
estimulou sedição contra o Congresso.
Na
maior vitrine que sobrou do trumpismo, o governo Bolsonaro, esses movimentos
deverão ser lidos com atenção pelos aliados do presidente nesses próximos dois
anos.
Bolsonaro
usa a carta da fraude eleitoral, focada em sua
obsessão pelo voto impresso, desde antes de ser eleito. Já naquele
tempo dizia que, se não ganhasse a eleição, teria ocorrido um roubo. Provas, como
no caso de seu ídolo americano, nunca mostrou.
Basta
acompanhar a "cobertura", aspas obrigatórias, do processo eleitoral
americano nas redes sociais bolsonaristas para saber o discurso montado para
2022. Naquele mundo paralelo pontificado pelos filhos do presidente, a fraude
brasileira já está no forno.
Assim,
a confusão nas ruas de Washington remete às aglomerações estimuladas por
bolsonaristas e aos protestos antidemocráticos do primeiro semestre no Brasil.
Aquelas
que foram atendidas pelo próprio presidente. A ameaça será usada até o limite,
na hipótese de Bolsonaro ser derrotado ano que vem. Até o discurso de culpar a
mídia por tudo é idêntico
O
fato de que o presidente foi o último
de algum país com algum peso relativo a dar parabéns a Biden em
si foi inócuo, mas importante para entender o método. Ninguém pode se queixar
de imprevisibilidade quando se trata de Bolsonaro.
Conhecido
pelo faro de sangue na água, o grupo de partidos conhecido como centrão já
apoiou todo mundo, do PT a Bolsonaro. Estava embarcado confortavelmente no
governo Dilma Rousseff quando a vaga do impeachment a colheu. Segue no poder.
Mas,
como ocorreu em 2016, não tem vocação para carregador de caixão político. O
pleito municipal de 2020 no Brasil já sugeriu uma inflexão do eleitorado, de
resto ainda bastante apoiador do presidente, em direção a nomes mais moderados.
Bolsonaro
teme a debacle econômica que pode advir neste ano, além de todo o caos
gerencial da pandemia —outro ponto em comum com seu guru americano.
Terá
de se agarrar à sua base mais fiel e radical, enquanto cede mais espaço aos
aliados antes demonizados, em caso de
perda de popularidade mais ampla.
Se 2022 assistir a um embate polarizado e histriônico, como Bolsonaro sugere sempre que pode, talvez a lição americana seja lida com antecipação pelo pessoal do centrão.
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