EDITORIAIS
É preciso reagir
Folha de S. Paulo
Cabe responsabilizar Bolsonaro por
palavras, mesmo que importem cada vez menos
A palavra e o poder nem sempre estão
conectados. Há sociedades menos complexas em que o chefe discursa para o vento.
Emposta a voz em ladainhas rotineiras, enquanto as pessoas tocam suas vidas sem
dar ouvidos à falação.
As famigeradas “lives” de quinta-feira do
presidente Jair Bolsonaro assemelham-se cada vez mais àquelas encenações
tribais de vazio de poder. A extensão dos discursos —e o conteúdo delirante das
mensagens— corre na contramão da credibilidade e da popularidade do mandatário
brasileiro. Quanto mais fala, menos manda.
A comparação, no entanto, tem o seu limite.
À diferença do que ocorre em organizações políticas elementares, no Estado
democrático de Direito o chefe do governo detém poder e responsabilidade e, por
isso, deve prestar contas à sociedade de seus atos e palavras.
Bolsonaro
passou mais de duas horas, na noite do último dia 29, a vituperar contra a urna
eletrônica. Como se não tivesse nada importante a fazer, em meio ao
morticínio de mais de 550 mil brasileiros pelo coronavírus, mobilizou recursos
da União para atacar com uma profusão de mentiras o mecanismo responsável há
anos pelo sucesso das votações no país.
Que ele alimenta a farsa a fim de encontrar pretexto para a possível derrota no ano que vem parece evidente. Mas isso não anula, da parte das autoridades incumbidas de impor limites ao Bonaparte do Planalto, a necessidade de responsabilizar um presidente da República que dobra a aposta na campanha de sabotagem contra um pilar do regime democrático.
O procurador-geral da República, Augusto
Aras, não tem desculpas para a inação e a protelação. Como outras figuras que
se acomodam e se associam à aventura Jair Bolsonaro, cabe-lhe ponderar como seu
nome vai figurar na história quando esse período anômalo da política brasileira
houver passado.
A mesma reflexão vale para o presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Em nome de interesses imediatistas, continuar
obstaculizando a análise de dezenas de pedidos de impeachment que enchem suas
gavetas pode, ademais, comprometer seu futuro na política, como a intenção de
reeleger-se para o comando da Casa em 2023.
Dos deputados federais e líderes
partidários, a retomada das atividades legislativas na semana que entra, nesse
contexto de arreganhos e ameaças presidenciais, exige foco para fulminar de uma
vez por todas a proposta de emenda à Constituição que cria o voto impresso.
Que Jair Bolsonaro, como um chefe impopular
e desacreditado, seja deixado falando sozinho, mas que também sinta o vapor das
instituições de controle e da maioria democrática no seu encalço.
Encruzilhada afegã
Folha de S. Paulo
Com saída americana, Taleban avança
enquanto China e a Rússia se posicionam
Com a admissão de derrota tardia, quase 20
anos após George W. Bush iniciar a mais longa guerra em que os americanos já se
envolveram, Joe Biden entregou o Afeganistão a seu próprio destino ao decidir
retirar suas tropas do país asiático.
O anúncio feito em abril tornou-se uma
saída bastante acelerada, seguida pelos aliados ocidentais de Washington,
loucos para deixar o atoleiro que já dragara britânicos e soviéticos no
passado.
O corolário previsível foi o
avanço do Taleban, o inimigo desalojado de Cabul em 2001 por ter dado
abrigo à rede terrorista que promoveu os maiores atentados já ocorridos em solo
americano, em 11 de setembro daquele ano.
O grupo fundamentalista islâmico já ocupa,
segundo algumas estimativas, 50% do território do país e cerca cidades
importantes, como Herat, onde atacou um quartel das Nações Unidas na sexta
(30).
Sem tempo para perder com considerações
filosóficas acerca do real sentido da autodeterminação dos povos, discurso que
atende sempre às conveniências da “realpolitik”, as potências com interesses
próximos na região já trabalham com o que parece inevitável.
Ou seja, a volta do Taleban ao poder, pela
força ou por algum acordo.
A China, que viu sua fronteira com o
Afeganistão tomada pelos fundamentalistas, chamou uma delegação taleban para
conversar. Franqueou-lhes apoio, cobrando de volta que parem de apoiar os
terroristas islâmicos que operam na província de Xinjiang.
De quebra, foram aos negócios. Tendo
anexado economicamente o Paquistão, o vizinho que pariu o Taleban, os chineses
já prometem construir estradas afegãs.
Se o caminho for o acordo pacífico com o
acossado governo do país, melhor. Se não for, tudo indica que tanto faz para
Pequim.
Já a Rússia, movida pela leitura
geopolítica de suas vastas fronteiras, se mostrou alarmada pela instabilidade
na Ásia Central, temendo o transbordamento de uma eventual guerra civil afegã
para seu aliado Tadjiquistão.
Enviou tropas para exercícios e irá reforçar
sua grande base militar no país, vizinho do Afeganistão. Irã e Turquia,
influentes em Cabul, também estudam seus movimentos para lidar com a nova
realidade.
Para os EUA, que aplaudiram a negociação
chinesa, é o melhor dos mundos: o problema é dos outros.
Já os afegãos, que viveram nas trevas
talebans por cinco anos, só poderão esperar pelo pior.
A recaída na fome
O Estado de S. Paulo
A fome voltou no Brasil e até poderia constar da pauta do governo central, se os arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro deixassem algum espaço
Fome virou assunto no Brasil, o segundo
maior exportador de comida, capaz de abastecer toda a sua população, alimentar
centenas de milhões em todo o mundo e ainda armazenar muita sobra. A
insegurança alimentar voltou a ser tema de pesquisadores nacionais e
estrangeiros, embora o País tenha saído há vários anos do mapa da fome da
Organização das Nações Unidas (ONU). A pobreza nunca foi extinta, mas a
desnutrição como problema econômico parecia convertida, de forma definitiva, em
passado histórico. Mas a fome voltou, e até poderia constar da pauta do governo
central, se os arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro deixassem algum
espaço.
O custo da
alimentação subiu 0,59% em julho, 3,23% no ano e 10,81% em 12 meses, segundo o
Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Não houve crescimento salarial desde o ano passado, mas nem isso faz muita
diferença para os quase 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados
e cerca de 34 milhões de informais. Dinheiro curto seria problema sério mesmo
com preços estáveis, mas no Brasil o pesadelo se completa com inflação
acelerada e uma pandemia ainda muito perigosa.
Com desemprego recorde, renda escassa e
inflação aquecida, milhões de famílias só têm conseguido comer graças a
campanhas de solidariedade. Os cenários da fome podem variar de uma pesquisa
para outra, mas são sempre muito feios. Quase um quarto dos brasileiros – 23,5%
– enfrentou insegurança alimentar moderada ou severa entre 2018 e 2020, segundo
estudo recente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO). Essa parcela foi 5,2% maior que a estimada entre 2014 e 2016. Em 2021 o
quadro só pode ter piorado, com a suspensão do auxílio emergencial, o aumento
do desemprego e a aceleração da alta de preços.
A atenção à fome, fato raro em Brasília,
motivou a divulgação, pelo serviço de notícias do Senado, de três projetos de
lei para o enfrentamento da insegurança alimentar. Os projetos, apresentados em
2019, 2020 e 2021 pelos senadores Jorge Kajuru (Podemos-GO), Plínio Valério
(PSDB-AM) e Jader Barbalho (MDB-PA), coincidem ao propor esquemas de doação de
comida às famílias carentes. Os detalhes variam e uma das propostas inclui a
limitação da alta de preços dos alimentos durante a pandemia. A inflação geral
do consumo seria o teto para o aumento dos preços da comida.
Além de tecnicamente complicado, esse
tabelamento fracassaria, como já ocorreu tantas vezes, e ainda provocaria
distorções. Mais sensato seria auxiliar as famílias necessitadas com a
distribuição de cestas básicas e com medidas para reforçar o abastecimento,
como o uso de estoques públicos e operações bem conduzidas de importação. Os
desafios atuais evidenciam a urgência de maior atenção a políticas de
abastecimento.
Um dos projetos determina a distribuição de
cestas básicas pelo Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Esse
misterioso mecanismo está subordinado à Secretaria Especial do Desenvolvimento
Social, do Ministério da Cidadania, atualmente ocupado pelo deputado João Roma
(Republicanos-BA), precedido no posto ministerial pelos deputados Osmar Terra e
Onyx Lorenzoni. O ministro Roma tem defendido o aumento do Bolsa Família, mas,
depois de nomeado, já defendeu também o voto impresso e apareceu ao lado do
presidente em live contra o distanciamento social na pandemia.
A redução do enorme desemprego, um dos
maiores do mundo, seria o remédio mais seguro e mais eficaz contra a
desnutrição, mas até agora o governo falhou nesse quesito, como têm mostrado as
pesquisas – as mais completas nessa área – do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). Uma das poucas novidades positivas, em relação ao tema da
fome, é a decisão de preservar o incentivo fiscal ao Programa de Alimentação do
Trabalhador (PAT), anunciada pelo relator do projeto de reforma do Imposto de
Renda, deputado Celso Sabino (PSDB-PA). Pelo menos o vale-refeição deve ser
salvo – uma bênção adicional para quem tiver um emprego.
A defesa das eleições
O Estado de S. Paulo
Ameaça de Braga Netto tem relação direta com a missão institucional do Ministério Público
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR)
quatro petições solicitando a abertura de inquérito para investigar o ministro
da Defesa, Walter Braga Netto, a respeito da ameaça contra as eleições de 2022.
Conforme revelou o Estado,
Braga Netto disse no dia 8 de julho, por meio de um interlocutor, ao presidente
da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que não haveria eleições em 2022, se
não houvesse voto impresso e auditável.
Após a revelação da ameaça, Braga Netto
emitiu uma nota, dizendo “que não se comunica com os Presidentes dos Poderes,
por meio de interlocutores”, e que “as Forças Armadas atuam e sempre atuarão
dentro dos limites previstos na Constituição”.
Ao final da nota, o ministro da Defesa
sentiu-se confortável para manifestar sua opinião sobre as regras eleitorais.
“Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no
processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas
as instâncias. A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de
comprovante impresso é legítima, defendida pelo governo federal, e está sendo
analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema”,
disse Braga Netto.
“A nota publicada pelo ministro da Defesa
está longe de negar o ocorrido. Ao contrário, reitera a defesa do voto
impresso, tema que nada tem a ver com a pasta, e diz não enviar interlocutores
ao Parlamento”, disse a deputada Natália Bonavides (PT-RN).
Na petição ao Supremo, Natália Bonavides
lembrou que a conduta revelada pelo Estado pode
ser enquadrada em quatro crimes de responsabilidade previstos na Lei
1.079/1950: (i) art. 6.º, 2 – usar de violência ou ameaça contra algum
representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagi-lo
no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo
objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção; (ii) art. 7.º, 1 –
impedir por violência, ameaça ou corrupção, o livre exercício do voto; (iii)
art. 7.º, 4 – utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei
eleitoral; (iv) art. 7.º, 5 – servir-se das autoridades sob sua subordinação
imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o
pratiquem sem repressão sua.
Em sua petição ao Supremo, o advogado Ronan
Wielewski Botelho destacou que a lei também prevê punição para a tentativa dos
crimes de responsabilidade. “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando
simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com
inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública”, diz
o art. 2.º da Lei 1.079/1950.
De enorme gravidade, a ameaça de Braga
Netto tem relação direta com a missão institucional do Ministério Público, de
“defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis” (art. 128 da Constituição). É um atentado contra o
regime democrático a tentativa de impor alguma condição para a realização das
eleições.
Cabe ao Ministério Público determinar as
diligências cabíveis para apurar, no âmbito da Justiça, o episódio. Numa
República, a lei vale para todos, sem exceções. Seja por parte do presidente da
República, do ministro da Defesa ou de qualquer outro cidadão, a tentativa de colocar
em dúvida a realização das eleições de 2022, condicionando-as a alguma
pretensão particular, agride a ordem jurídica e o regime democrático.
Vale lembrar que, no mesmo dia 8 de julho,
o presidente Bolsonaro disse: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não
temos eleições”. No linguajar bolsonarista, eleições limpas são aquelas cujos
resultados podem ser contestados indefinidamente. Por isso, o voto impresso,
com sua contabilidade manual, é tão interessante a Jair Bolsonaro. Seguro e
auditável, o atual sistema eletrônico não lhe convém.
Tal como prevê a Constituição, a PGR não
tem, no caso, muitas opções. Só lhe cabe defender as eleições.
Cracolândia: até quando?
O Estado de S. Paulo
Se recursos não faltam para enfrentar o
problema, cabe indagar se falta determinação
Uma pesquisa rápida no acervo do Estado revelará um bom
número de editoriais publicados ao longo de muitos anos nesta página sobre a
chaga da Cracolândia. Não foram poucas as vezes em que aqui se tratou desta
espécie de zona morta encastrada no centro da maior cidade da América Latina. A
um só tempo, isto revela tanto a gravidade da questão como a incompetência,
para dizer o mínimo, de sucessivos governadores e prefeitos de São Paulo para
lidar com um complexo problema de natureza policial, social e de saúde pública.
À medida que o tempo passa e nada é feito
pelas forças do Estado para dar um fim definitivo à Cracolândia, os criminosos
que exploram a miséria física e emocional dos usuários de crack aprimoram suas
técnicas de delinquência. Agora, de tão confortáveis que se sentem, inventaram
um tal “carrossel da droga”.
A Polícia Civil de São Paulo identificou
que o Primeiro Comando da Capital (PCC) passou a vender crack em barracas,
chamadas de “lojas”, em uma espécie de feira itinerante. Enquanto policiais ou
agentes da Prefeitura entram por uma via do quadrilátero formado pela Avenida
Duque de Caxias, Alamedas Cleveland e Barão de Piracicaba e Rua Helvétia, na
região da Estação Júlio Prestes, um “salveiro” – indivíduo que emite um
“salve”, que significa “alerta” na linguagem do crime – avisa os comparsas e,
então, os traficantes levantam as barracas onde o crack é vendido à luz do dia
e se movem para outro ponto da região. E assim vão, policiais ou guardas
municipais perseguindo traficantes.
Em primeiro lugar, é inadmissível que o
PCC, ou qualquer grupo criminoso, exerça controle sobre uma porção do
território da cidade de forma tão desabrida. A facção domina a Cracolândia e
não é de hoje. Só com o aluguel das cerca de 30 “lojas” e a venda de crack para
os “locatários” – que têm a obrigação de comprar a droga direto do bando –, o
PCC fatura, aproximadamente, R$ 200 milhões por ano apenas naquela área. O 77.º
Distrito Policial (Santa Cecília) conduz uma investigação que, nos últimos seis
meses, já levou à prisão de 15 pessoas. Entre elas está Lorraine Cutier Bauer
Romeiro, jovem “influencer” de classe média com milhares de seguidores nas
redes sociais que, segundo o inquérito, era “locatária” de uma das barracas do
tráfico e chegava a faturar R$ 6 mil por dia.
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB),
afirmou que o efetivo da Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região da
Cracolândia foi “dobrado”, de 80 para 160 guardas, e que “as barracas de venda
de crack não serão mais admitidas no local”. Ora, e desde quando foram?
É inegável que a Cracolândia é a face mais
evidente e degradante de um problema de fundo muito mais grave – a combinação
de miséria social, desestruturação familiar e dependência química.
Indubitavelmente, é um problema de difícil solução. E esta passa,
necessariamente, por uma ação estatal coordenada que concilie assistência
social, suporte psicológico aos dependentes, atendimento médico-hospitalar,
inserção comunitária, reurbanização e, evidentemente, intervenções policiais.
No entanto, em que pese a dificuldade, já passou muito da hora de a Prefeitura
de São Paulo, com o apoio do governo do Estado nas ações de sua competência
privativa, aviar soluções. Recursos para isto não faltam à metrópole, sejam
financeiros, técnicos ou humanos. E se estes estão presentes, é de indagar se o
que falta é determinação.
Este é o ponto fulcral da questão. As ações
da Polícia Militar (PM) e da GCM enxugam gelo há anos. Ações pontuais – sejam
de natureza policial ou assistencial – não produzem efeitos duradouros. A
rigor, já não se pode nem sequer falar em uma Cracolândia depois de tanta
tolerância com o intolerável, pois há ao menos 20 outras “mini-Cracolândias”
espalhadas pela cidade de São Paulo. Quantas mais haverá no futuro próximo, a
coragem das chamadas autoridades para enfrentar o problema vai dizer.
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