Valor Econômico
A “Constituição Cidadã” assegurou direitos
diferentes a servidores e trabalhadores do setor privado
A concentração de renda no Brasil é
criticada por todos, mas quando se pretende alterá-la, cada grupo quer jogar a
conta para os demais. Ninguém se reconhece como privilegiado -são sempre os
outros. Assim, os de fato excluídos e pobres permanecem como sempre estiveram:
excluídos e pobres.
A história do Brasil é uma história de
desigualdade. Durante a colônia e o império, explorou-se a mão de obra dos
escravizados, brutalmente arrancados da África e submetidos a condições
desumanas de trabalho e vida. O fim da escravidão não trouxe reparações, nem qualquer
política que beneficiasse essa e qualquer outra parcela pobre da população.
No início do século XX, mais de 2/3 da população adulta era analfabeta. Segundo estimativa de Pedro de Souza, em 1930 cerca de 20% da renda nacional era apropriada pelos 1% mais ricos. Se há alguma permanência em nosso país, além da desigualdade, é o conceito de que a lei possa estabelecer brasileiros de dois tipos, o que foi preservado pelos constituintes de 1988. A “Constituição Cidadã” estabeleceu que todos são iguais perante a lei, mas ao tratar de condições de trabalho e aposentadoria, assegurou direitos muito diferentes a servidores e trabalhadores do setor privado.
Também alguns princípios aparentemente
inquestionáveis resultaram, na prática, em grandes desigualdades. É o caso da
prisão somente após o trânsito em julgado que permite aos ricos e poderosos,
que podem pagar bons advogados, protelar - muitas vezes até à prescrição - o
cumprimento de penas, enquanto os pobres vão para a cadeia por pequenos crimes
e permanecem presos por longos períodos sem qualquer julgamento.
O descaso das elites diante da desigualdade
levou o país, na década de 1950, quando metade das crianças estavam fora da
escola, a usar recursos públicos escassos na construção de uma nova capital com
arquitetura futurista. Na mesma década, já havia sido criada uma grande empresa
estatal de petróleo que absorvia imensos recursos que, se tivessem sido
direcionados à educação pública, teriam criado oportunidades extraordinárias
aos pobres.
A estatização e a economia fechada, num
país em que a educação de qualidade se restringia a poucos, criaram
confortáveis postos de trabalho - também conhecidos como “empregos de
qualidade” - para quem estava capacitado a ocupá-los, agravando a má
distribuição de renda. No lançamento do Plano Real, o valor do salário mínimo
estava em R$ 64,79. Em janeiro de 2021, as correções acima da inflação o haviam
elevado a R$ 1.100. Se o salário mínimo tivesse acompanhado apenas a variação
do INPC, estaria em R$ 434,56. A correção de 153% acima da inflação tinha como
objetivo aumentar a remuneração dos pobres relativamente à remuneração de
trabalhadores qualificados.
No entanto, algumas categorias
profissionais permaneceram beneficiadas pela indexação que impossibilita essa
mudança. No caso dos engenheiros, por exemplo, a lei 4.950/1966 fixa a
remuneração mínima da categoria em 8,5 salários mínimos. Esse piso é tão
elevado, sobretudo para um recém-formado sem experiência, que só vigora em
empresas estatais, enquanto no setor privado predomina a pejotização. Outras
categorias são protegidas por regras semelhantes ou reservas de mercado
diligentemente defendidas pelos conselhos profissionais.
Antes da reforma da previdência de 2019, a
aposentadoria por tempo de contribuição - teoricamente um direito de todos -
reservou à classe média, que trabalha toda a vida profissional com carteira
assinada, o direito a se aposentar precocemente, enquanto os pobres tinham que
aguardar até os 65 anos (mulheres, 60). A reforma sofreu oposição acirrada de
sindicatos e partidos de esquerda, que teoricamente combatem a concentração de
renda.
Neste país, o termo “elites” é
frequentemente usado para denominar exclusivamente pessoas cuja renda
(altíssima) provém da propriedade do capital ou da terra, em geral recebidos
por herança. Aqueles cuja renda (também muito alta) provém do trabalho qualificado
- altos funcionários do Estado, profissionais liberais, executivos de grandes
empresas, etc. - se auto intitulam marotamente cidadãos de “classe média alta”.
No Brasil, tanto a elite quanto a classe
média alta passam férias no exterior, mas enquanto a “elite” voa na primeira
classe ou na executiva, a dita “classe média alta” viaja na turística. Por não
se enxergar como membro da elite, o típico cidadão de “classe média alta” se
sente à vontade para beneficiar-se de mimos do Estado, como se fosse um direito
natural. Sua trajetória profissional começa ao ingressar numa universidade
pública gratuita, em cujo competitivo vestibular só é aprovado porque pôde
estudar numa excelente (e cara) escola privada. E ainda se opõe a cotas para
pobres ou negros, utilizando um discurso falacioso de meritocracia, ao defender
mais vagas para seus filhos e amigos.
Após a formatura, o cidadão
ultraqualificado trabalhará com carteira assinada. Se optar por um emprego no
setor privado, a economia fechada se encarregará de proteger a empresa em que
trabalha da competição estrangeira. Se escolher uma carreira de profissional
liberal, poderá driblar a pesada tributação que incide sobre trabalhadores
celetistas, oferecendo seus serviços por meio de uma firma tributada sob o
regime de lucro presumido. Se preferir ingressar nas melhores carreiras do
serviço público, estará preparado para enfrentar um dificílimo concurso em que
só são aprovados os poucos com qualificação semelhante à sua.
Aqueles que não tiveram oportunidade de
estudar, ou que estudaram em escolas públicas de má qualidade, acabam na
economia informal ou em empregos precários, onde sequer vigora a CLT. O descaso
com a educação dos mais pobres, a resistência à reforma da previdência e à
adoção de uma reforma tributária capaz de corrigir desigualdades gritantes
mostram que, sem uma reversão profunda de conceitos arraigados, não haverá
mudanças e a desigualdade persistirá por mais cinco séculos.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é
professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
Renato Fragelli Cardoso é
professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV)
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